Camila Brandalise ([email protected])Estádio El Madrigal, 35ª. rodada do Campeonato Espanhol, domingo 27 de abril. Trinta minutos do segundo tempo de Villareal e Barcelona. De repente, cai uma banana na área de escanteio, em direção ao lateral do time catalão, Daniel Alves. Infelizmente, uma cena corriqueira nos estádios europeus. Mas o jogador brasileiro resolve mudar o curso da história e, de vítima, passa a protagonista. Prestes a chutar a bola, ele para, olha, corre para a frente, pega a fruta, descasca e a enfia na boca, de uma vez só. A cena dura apenas seis segundos, mas foi o suficiente. Com esse ato simbólico, o atleta conseguiu criar uma rede de mobilização contra o racismo, iniciada no próprio domingo com Neymar, seu colega de clube, que postou uma foto reproduzindo o gesto no Instagram. A partir daí, pulularam nas redes sociais imagens de personalidades do Brasil e do mundo segurando ou comendo uma banana acompanhadas da hashtag “somos todos macacos”, mais tarde revelada uma campanha de uma agência de publicidade – detalhe que pouco importa, uma vez que o que deve ser combatido é o gesto de intolerância, não uma ideia original e oportuna. Agora, os esforços antirracistas já estão concentrados na Copa do Mundo. A pouco mais de um mês do campeonato, o governo federal anunciou que pretende criar uma campanha contra o preconceito e aproveitar os holofotes do campeonato para discutir o problema. A presidenta Dilma Rousseff também pediu ao papa Francisco que escreva uma carta contra o racismo, a ser lida na abertura do evento. E o chefão da Fifa, Joseph Blatter, declarou que, nas partidas do Mundial, a ordem é tolerância zero contra o menor sinal de preconceito. Mas essa mobilização não pode ficar restrita às arenas esportivas, até porque o ódio racial, velado ou não, está assentado nas mais diferentes camadas da sociedade. É uma ótima oportunidade de se iniciar um movimento global contra a intolerância.
Na Europa, onde jogadores negros brasileiros, como Daniel Alves e Neymar, relatam ser alvo de racismo há muitos anos, é comum acontecer manifestações racistas e xenófobas. Na França, há grupos de extrema direita que frequentemente realizam manifestações contra imigrantes. O mesmo ocorre na Itália. A ilha de Lampedusa é considerada porta de entrada para estrangeiros entrarem ilegalmente na Europa, e no local já há denúncias de violações contra os direitos humanos. Com o crescimento da imigração também na Espanha, o País está hoje entre os mais racistas e xenófobos do continente. Todas essas ações de intolerância precisam ser banidas.
O racismo se escancara no universo dos esportes porque é um ambiente onde os negros brilham e se sobressaem, em diferentes modalidades – caso do futebol, do atletismo e do basquete, por exemplo. Motivados pela competição, torcidas adversárias usam a cor da pele como ofensa, fruto de um discurso de intolerância que estão acostumados a ouvir fora de campo. “Futebol é representação da cultura coletiva. Nos estádios estão os mesmos desejos e valores compartilhados socialmente. Entre eles, o preconceito”, afirma o sociólogo Maurício Murad, autor do livro “Para Entender: A Violência no Futebol” (Ed. Saraiva). A diferença é que, no meio da torcida, o indivíduo se liberta de algumas amarras e resolve extrapolar as regras sociais. “A multidão propicia esses excessos porque as pessoas se sentem escondidas, o que suscita o lado mais bárbaro e não civilizado.” Isso não significa que o comportamento é generalizado. Atos racistas costumam provocar espanto em parte dos brasileiros, vide a repercussão do que aconteceu com Daniel Alves. Para o historiador Joel Rufino dos Santos, autor de “A Escravidão no Brasil” (Ed. Melhoramentos), as reações contrárias mostram um desejo genuíno em favor da democracia racial. “Mas ela não existe. Enquanto esta reportagem estiver sendo lida, provavelmente um negro estará sofrendo algum tipo de preconceito”, diz.
Apesar de a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão ligado à Presidência da República, registrar um aumento no número de denúncias no Brasil ano após ano (em 2011 foram 219, em 2013, 425), é certo que os casos de intolerância são muito mais numerosos do que as estatísticas reproduzem. Vivemos uma situação de preconceito naturalizado, onde tudo vira piada ou brincadeira. “Se alguém chama um negro de ‘picolé de asfalto’, soa engraçado, não? Mas não só não tem graça nenhuma, como mostra que a cor da pele é motivo de subordinação. É humilhante”, afirma Giovanni Harvey, secretário-executivo da Seppir. Segundo ele, no Brasil, todos convivem aparentemente bem por causa do que ele chama de racismo cordial. “Um negro pode ser seu vizinho, você cumprimenta, conversa. Mas o jovem com cor de pele mais escura não vai poder namorar sua filha branca.” Num país em que a população negra é maioria, representando 51% dos habitantes e com projeção de chegar a 60% nos próximos anos, o termo certo para caracterizar a situação dos pretos e pardos no País é: desvantagem. Ações como as cotas para negros, por exemplo, louváveis, visam a compensar a desigualdade, não a diminuir o preconceito.
O processo histórico de formação do País tem o componente étnico como elemento estruturante. Palco da mais longa escravidão das Américas, 350 anos, o Brasil “se fez” durante esse período, nas palavras de Joaquim Nabuco (1849-1910): “...Consumiu os lucros na compra de escravos e no luxo da cidade; não edificou escolas, nem igrejas, não construiu pontes... o que fez foi esterilizar o solo pela sua cultura extenuativa, embrutecer os escravos, impedir o desenvolvimento dos municípios...” Continua o político abolicionista: “...essa fábrica de espoliação não podia realizar bem algum, e foi, com efeito, um flagelo que imprimiu na face da sociedade e da terra todos os sinais da decadência prematura...”
Com base nessa perspectiva, não é à toa o baixíssimo número de negros e pardos que atingem cargos de grande representatividade até os dias de hoje. E no futebol não é diferente. Mesmo com muitos jogadores negros, cargos de presidentes de confederações, dirigentes de clubes e técnicos continuam sendo ocupados, na maioria das vezes, por brancos. E quando conseguem atingir posições mais altas, acabam sendo humilhados por causa da cor da pele. “Tenho relatos de treinadores negros que ouviam dos presidentes dos clubes que seriam demitidos por sua cor”, afirma o historiador da Universidade de São Paulo Marcel Diego Tonini, autor de pesquisa sobre a presença do negro no futebol. O mesmo acontece em outras posições de visibilidade. Um dos relatos mais recentes é o do árbitro Márcio Chagas, 37 anos, que foi chamado de macaco enquanto apitava um jogo entre Esportivo e Veranópolis, no Campeonato Gaúcho, em março deste ano. “Teu lugar é na selva” e “volta para o circo” foram outras ofensas que Chagas ouviu na partida. Não bastasse isso, torcedores do Esportivo deixaram bananas no carro do árbitro. “Em 15 anos de trabalho, já passei por situações parecidas, mas essa foi a mais violenta”, diz ele. O baque foi tão grande que a primeira decisão foi abandonar a profissão. Mas Chagas decidiu apitar até o fim do campeonato e pelo quarto ano consecutivo foi eleito o melhor árbitro. “Senti muita aflição em relação à carreira. Poderia seguir por mais oito anos na minha função, mas decidi antecipar minha aposentadoria”, diz ele, que deixou os campos.
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Para Chagas, a punição contra o Esportivo foi muito branda. O clube perdeu cinco mandos de campo e teve multa de R$ 30 mil. Depois, ainda perdeu nove pontos e foi rebaixado. “Os dirigentes poderiam ter localizado os torcedores que colocaram as bananas no meu carro, mas foram omissos”, afirma. Para os especialistas, é preciso estabelecer sanções mais duras e padronizadas. “Falta atitude. Fifa, Uefa e CBF podem fazer muito mais do que levar uma faixa para o campo onde se lê ‘diga não ao racismo’”, afirma o pesquisador Marcel Tonini. Talvez seguir o exemplo da NBA, a liga de basquete americana, que aplicou uma multa de US$ 2,5 milhões (R$ 5,6 milhões) ao dono do time Los Angeles Clippers, Donald Sterling, e o baniu do esporte após o vazamento de uma conversa com a namorada em que ele pede para não divulgar fotos ao lado de negros. Uma situação tão grave que o negro Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, se manifestou. “Quando um ignorante fala para demonstrar a sua ignorância, não devemos fazemos nada, só deixá-lo falar”, afirmou o líder do governo norte-americano.
O responsável por atirar a banana em Daniel Alves foi identificado e preso. Ele se chama David Campayo Lleo e tem 26 anos. Foi banido do estádio do Villarreal, detido, e, se for condenado pela Justiça, ficará preso por até três anos. Caso um ato como o de Campayo Lleo se repita no Mundial do Brasil, a Fifa não tem nada especificado em relação às punições. Afirma somente que sua postura segue o que está escrito no Artigo 3 do estatuto da organização, que fala somente em “suspensão ou expulsão”, sem estipular períodos nem valores de multa. Além disso, afirma que “as quartas de final da Copa serão novamente dedicadas à luta contra a discriminação”. Soma-se a isso o texto do papa Francisco. “Mas isso é só discurso. Não acho que terá impacto real”, afirma o historiador Joel Rufino dos Santos. “Precisamos ter ações práticas. Acredito mais no poder do professor do que no do papa.”
De fato, a educação tem um papel essencial para caminharmos rumo ao fim do racismo. A mudança de mentalidade fora de campo naturalmente vai se manifestar durante os jogos, e quem sabe esportistas ou não, os negros passarão por menos situações humilhantes. “Desde que nasce, a criança convive com ideologias racistas e práticas discriminatórias. Estabelecer o diálogo cedo permitirá que ela desenvolva um olhar que valoriza a diversidade”, afirma a educadora Eliane Cavalleiro, autora do livro “Racismo e Antirracismo na Educação (Ed. Selo Negro)”. O Ministério da Educação disponibiliza desde 2005 material didático voltado para o combate ao preconceito racial em sala de aula. Mas, segundo Eliane, o primeiro passo é o professor pensar em suas próprias atitudes: “Não adianta ter o discurso contra o preconceito só dentro da classe.” Para o professor de direito da Universidade de Washington Jeremi Duru, que está no Brasil levantando dados para a pesquisa “A Inclusão Social de Negros pelo Esporte”, o esforço de tentar solucionar a chaga do racismo também pode ser pensado de dentro para fora. Segundo ele, se as manifestações de intolerância diminuírem nas arenas esportivas, as boas práticas de respeito podem se repetir além das quatro linhas. “Muitas vezes, a sociedade segue para onde o esporte aponta. Portanto, se pudermos erradicar o racismo no esporte, nós estaremos mais bem equipados para resolvê-lo na sociedade.” A Copa do Mundo é uma ótima oportunidade para esse bom combate.
Colaborou Wilson Aquino