REBELDES DE FARDA
Justiça

REBELDES DE FARDA


ZERO HORA 04/05/2014 | 07h03

Comissão resgata história de militares que se opuseram à ditadura. Dentro dos quartéis, nem todos abraçaram o movimento golpista de 1964, e quem resolveu resistir sofreu uma perseguição implacável

por Guilherme Mazui e Klécio Santos | Brasília



Jango (C) e Brizola (D) tinham aliados nos quartéis. A fidelidade aos trabalhistas acabou custando a vida de militaresFoto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal


No momento em que a ditadura se instalou no país, em 1964, a história colocou a democracia e os militares em lados opostos. Mas, nas trincheiras, também havia muitos de farda dispostos a resistir em defesa da restauração do governo de João Goulart.

É essa parte ainda turva da história que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) está disposta a reescrever, removendo a poeira dos arquivos e trazendo à tona fatos envolvendo aqueles que se opuseram ao golpe de dentro da caserna. Nas fileiras dos que tombaram com a implantação da ditadura militar, se conhece parte da biografia de, pelo menos, 27 militares. Já os sobreviventes, que foram perseguidos, torturados ou expurgados, são milhares. Boa parte da memória desse batalhão continua enterrada.

Com a investigação, a CNV imagina que os números, inclusive o de mortos, devem aumentar até a entrega do seu relatório final, em dezembro. Os dados revelam uma parte ínfima de um conjunto bem amplo de perseguidos nos quartéis, algo ainda pouco estudado. Os militares, universo que engloba as polícias estaduais, são a categoria proporcionalmente mais castigada pelo regime. Hoje, eles são invisíveis nas estatísticas, que reúnem dados da repressão, materializada em mortes, torturas, expulsões e aposentadorias forçadas.

— Trabalhamos com o número provisório de 7,5 mil atingidos em 1964, mas ainda temos os períodos pré e pós-golpe. São muitos os casos que não tiveram repercussão — aponta Paulo Cunha, um dos responsáveis pela pesquisa da CNV.

Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Cunha peregrina pelo país atrás de histórias de resistência na caserna. Além de informações sobre mortos, busca sobreviventes que preferiam silenciar após as agressões e ficaram à margem das estatísticas oficiais.

Uma amostra da dimensão da perseguição dentro das forças de segurança é a avalanche de pedidos de anistia que chegou ao Ministério da Justiça. Só militares ou familiares fizeram mais de 11 mil solicitações.

Nacionalistas x Americanófilos

Logo após a queda de Jango, aponta o jornalista Flávio Tavares, a perseguição dentro da caserna foi "implacável", sem poupar patentes, atingindo de taifeiros a oficiais. A maioria, com perfil nacionalista, pagou um preço alto por conta da ideologia. Era proibido discordar do governo ou apenas simpatizar com os dissidentes.

Tavares ressalta que o golpe foi dado por um setor das Forças Armadas, instituição que congregava opiniões distintas. A caserna era dividida entre nacionalistas, mais ligados à esquerda e contra o imperialismo, e "americanófilos", com discurso de caça aos comunistas alimentado pela Guerra Fria.

Na Aeronáutica, dois grupos importantes de nacionalistas estavam no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. As bases de Santa Cruz (RJ) e Canoas tentaram resistir ao golpe. Antes, em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, um motim de sargentos e suboficiais fez da base de Canoas o epicentro de uma crise que impediu o bombardeio do Palácio Piratini.

— Esses sargentos da Aeronáutica foram todos cassados. Foi feita uma limpeza nas Forças Armadas no começo do regime. Só restou quem concordava ou ficava quieto — recorda Tavares.

Um dos envolvidos em 1961 que tombou com o golpe foi o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto a tiros enquanto era destituído do comando da base de Canoas, em abril de 1964.

Na listagem de nomes cujas biografias são menos conhecidas, também consta o do catarinense Wânio José de Mattos, capitão da Polícia Militar de São Paulo, banido para o Chile em troca da liberdade do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Mattos, que era da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), padeceu nas mãos dos torturadores no Estádio Nacional do Chile, em 1973, no primeiro mês após a queda do presidente Salvador Allende.

A família só soube das circunstâncias da morte nos anos 1990, quando o Chile abriu arquivos da sua ditadura. O governo brasileiro já sabia do caso desde outubro de 1973, após a embaixada de Santiago enviar um telegrama confidencial ao Itamaraty para comunicar o "falecimento do extremista brasileiro".

— Muitos companheiros sofreram e foram esquecidos. Imagina a vida de um militar de esquerda no quartel. Você era odiado e humilhado por seus colegas — recorda Pedro Lobo, major reformado da PM de São Paulo, ex-militante da VPR, que serviu com Mattos.

Comissão Nacional da Verdade buscará dados no RS

O objetivo da ofensiva da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em relação aos militares perseguidos pela ditadura é romper silêncios e esclarecer pontos ainda em aberto de algumas biografias. O consultor da CNV Paulo Cunha desembarca em Porto Alegre no segundo semestre para uma audiência pública.

O especialista procura também documentos e relatos sobre assassinados e torturados que não estejam entre os anistiados ou na lista de mortos e desaparecidos.

— No Sul, a repressão foi pesada nas Forças Armadas e na Brigada, que eram politizadas e tinham alas pró Leonel Brizola e Jango, inimigos do regime — afirma Cunha.

Entre os 27 mortos cujas histórias são o ponto de partida da CNV, estão cinco gaúchos. Além de Alfeu de Alcântara, integram a lista o major do Exército Joaquim Pires Cerveira, o sargento Edu Barreto Leite, o marinheiro Evaldo Luiz Ferreira de Souza e o capitão da BM Darcy dos Santos Mariante.

Filha do major Cerveira, a historiadora Neusah Cerveira aprova a busca por novas informações, mas não espera grandes novidades sobre o pai. Só gostaria que fosse possível terminar com o mistério do destino do corpo, ainda desconhecido, ou mesmo esclarecer quem foram os culpados pela morte do oficial.

— Não se trata de revanche, mas os responsáveis (pela morte) precisam ser punidos — diz Neusah.

Integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, a ativista Nadine Borges acredita que parte do esquecimento sobre a vida dos perseguidos deriva do medo das próprias vítimas e de seus familiares. Ainda em investigação, a recente morte do coronel reformado Paulo Malhães, torturador confesso, ajuda a intimidar.

— Reconhecer a perseguição é um ato de coragem, pois exige exposição e revive memórias dolorosas — afirma Nadine.

AS HISTÓRIAS DE ALGUNS DOS OPOSITORES

Alfeu de Alcântara
Força: Aeronáutica
Nascimento: 1922, Itaqui
Morte: 1964, Porto Alegre

Três dias após o golpe, Alfeu foi assassinado na base de Canoas. A tese era de que o tenente-coronel — promovido de forma póstuma a coronel — havia resistido a sua deposição no cargo de comandante da 5ª Zona Aérea. Alfeu foi atingido por tiros, e a necropsia atestou que foram disparados de uma posição fora do seu campo de visão. Ele estava marcado desde 1961, pela participação na resistência ao ataque que seria feito por caças ao Palácio Piratini, de onde Leonel Brizola comandava um levante para a garantir a posse de Jango. Alfeu foi substituído pelo brigadeiro Nelson Freire Lavenère-Wanderley, que prendeu todos os rebelados de 1961. O reconhecimento de que sua morte foi por motivos políticos só ocorreu em 2003.

Darcy dos Santos Mariante
Força: Brigada Militar
Nascimento: 1928, Caxias do Sul
Morte: 1966, Porto Alegre

Capitão, Mariante caiu com a pressão psicológica. Apoiava o PTB de Brizola e Jango, considerados inimigos do regime. Apesar de ter escapado de aposentadorias forçadas e exonerações, o capitão sucumbiu em razão das punições disciplinares, formas de repressão dentro da BM. Preso e torturado no 1º Batalhão de PM de Porto Alegre, em 1965, não resistiu às humilhações do cárcere. No ano seguinte, suicidou-se na frente da família com um tiro no peito. Advogado e coronel reformado da BM, Maildes Alves de Mello serviu com Mariante e relata a "devassa" feita na corporação depois do golpe, uma caça aos membros que pactuavam com o trabalhismo ou o comunismo. Segundo Maildes, Mariante servia no quartel-general da BM, local favorável ao novo regime.

Edu Barreto Leite
Força: Exército
Nascimento: 1940, Dom Pedrito
Morte: 1964, Rio de Janeiro

Apontado como subversivo, o terceiro-sargento trabalhava no serviço de rádio do Ministério da Guerra. Em abril de 1964, o militar despencou do sétimo andar do edifício onde morava, no Rio. Morreu no hospital com fraturas múltiplas. A versão oficial tratou o caso como suicídio. Leite teria pulado pela janela pouco antes de agentes invadirem seu apartamento, informação contestada pela família. À época, o zelador do prédio relatou que, na noite da queda, cinco homens esperavam pelo militar. Foi possível ouvir ruídos de luta corporal e de tiros vindos do apartamento, sendo que o zelador garantiu ter visto o morador ser arremessado. O inquérito militar não reconheceu o assassinato por questões políticas. O Estado só admitiu a responsabilidade pela morte em 2005.

Evaldo Ferreira de Souza
Força: Marinha
Nascimento: 1942, Pelotas
Morte: 1973, Olinda (PE)

Foi colega do cabo Anselmo nas revoltas na Marinha que precederam a derrubada de Jango. Ambos eram ativos na Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais. Evaldo foi exonerado em 1964 e ficou cinco anos em Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilha. Recrutado por Anselmo para reerguer a VPR em Pernambuco, entrou na rota de morte da ditadura em 1973, no episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento, em que seis militantes foram assassinados, todos delatados por Anselmo. Evaldo estava na casa de Soledad Barrett Viedma, namorada do agente duplo mais famosos do regime, em Olinda, quando foi preso antes de ser torturado com os demais companheiros na chácara em Abreu e Lima (PE).

Joaquim Pires Cerveira
Força: Exército
Nascimento: 1923, Pelotas
Morte: 1974, Rio de Janeiro

Major da cavalaria, Cerveira ingressou jovem no PCB, após a derrubada do Estado Novo. Nos anos 1950, engajou-se nas mobilizações nacionalistas e na campanha presidencial do marechal Henrique Teixeira Lott. Durante o golpe, morava em Curitiba e era ligado ao PTB, legenda pela qual se elegeu vereador. Passou à reserva com o primeiro Ato Institucional. Liderou uma pequena organização clandestina, a Frente de Libertação Nacional (FLN), que se envolveu com a VPR de Lamarca no sequestro do embaixador alemão Von Holleben. Banido do país, foi sequestrado em 1973, em Buenos Aires, vítima de uma das primeiras ações conjuntas das ditaduras do Cone Sul. Preso pelo delegado Sérgio Fleury, foi trazido para o Brasil, e hoje é um dos desaparecidos políticos.



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