Justiça
O LEGADO PERVERSO
ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748
ARTIGOS
Flávio Tavares*
O golpe de Estado nos acompanha até hoje como ferida e como espanto. Senti seus passos já antes daquele 1º de abril de 1964, na conspiração que se fazia à luz do dia. Eu era o colunista político, em Brasília, da Última Hora, o único grande jornal que não pedia a derrubada do presidente da República. O Congresso ainda tinha prestígio e poder e lá convivi com golpistas e antigolpistas. Também as Forças Armadas tinham prestígio, num tempo em que se debatiam as reformas de base que, a partir da reforma agrária, construiriam o futuro. Ou que nos levariam ao inferno, a ser uma nova China comunista, como o embaixador dos Estados Unidos sussurrava a políticos e militares.
Desde a posse de João Goulart, em 1961, a extrema direita pregava o golpe. Assim, quando o general Mourão Filho rebelou-se em Minas a 31 de março, ninguém se espantou: antes, os mecanismos da democracia tinham dominado meia dúzia de sedições. Estarreci-me, porém, com o ardil em que o senador Moura Andrade transformou o Congresso em cúmplice de tudo. Na madrugada de 2 de abril, numa sessão de três minutos (sem debate ou votação), o presidente do Congresso declarou “vaga” a presidência da República, após ler o ofício em que João Goulart comunicava que viajava a Porto Alegre, com os ministros, para instalar o governo. Encerrou a sessão, desligou os microfones e, entre gritos de protestos e de vitória, saiu para dar posse ao novo “presidente provisório” no Palácio do Planalto.
A cilada fora perfeita, mas fora uma cilada, como lembro no meu novo livro 1964 – O Golpe. A missão do Congresso era dar guarida à Constituição, não ao golpe. Mesmo sem ainda conhecer o horror a vir depois, aquilo era uma bofetada à minha geração, formada na crença da liberdade e do pluralismo.
Logo, a Junta Militar impôs o Ato Institucional e “legalizou” a ditadura, com cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos, prisões em massa e expulsões das Forças Armadas, pela primeira vez na História. E aí, o golpe muda nossas vidas. Ao punir, o novo poder oficializou a violência e o medo, destruiu os valores morais da convivência cotidiana. Brotaram aduladores, alcaguetes e delatores descobrindo “comunistas subversivos” em todos os lados.
Ninguém ousava falar em ditadura e meu espanto cresceu. Tudo se vigiava e reprimia. A violência substituía a solidariedade. Aqui, na UFRGS, o filósofo e pensador católico Ernâni Maria Fiori encabeçou a lista dos “comunistas expulsos”. A Universidade de Brasília, inovadora na ciência e nas artes, foi invadida – a biblioteca destruída, alunos e professores presos ou expulsos. O absurdo e a intolerância usaram práticas medievais de perseguição. A fúria varreu até o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio, dedicado à pesquisa médica, demitindo “cientistas comunistas”.
A quartelada de 1º de abril adotou o nome de “Revolução” e a imprensa cúmplice a chamou assim. Surgiu a grande simulação: uma ditadura com parlamento, que discutia o corriqueiro, nunca temas de fundo. Agora, ao ter em mãos os documentos sobre a participação política e militar dos EUA no golpe de 1964, entendi a mútua sedução de cinismo político entre os quartéis e o Congresso. Um precisava do outro para sobreviver, sem que a opinião pública norte-americana percebesse que seu governo apoiara e financiara a instituição de uma ditadura. A simulação inundou o país. A propaganda oficial escondeu os porões em que a tortura se tornou “método de interrogatório” e ia até ao assassinato.
O medo fez o Brasil se calar. A adulação instalou-se como norma de conduta social. Mais do que a repressão e a tortura, o legado perverso do golpe de 1964 foi ter mudado o comportamento social, fazendo do oportunismo um estilo de vida.
Por acaso, não é o que perdura até hoje na política?
*JORNALISTA E ESCRITOR
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