ZERO HORA 08 de setembro de 2013 | N° 17547
ARTIGOS
Flávio Tavares*
O jornal O Globo, do Rio, que encabeça o maior grupo de comunicação do país, deu um exemplo de coragem política e dignidade empresarial: publicamente reconheceu ter cometido um erro profundo ao apoiar o golpe militar de 1964, que depôs o governo constitucional e instituiu a ditadura: A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História.
No domingo passado, 1º de setembro, em análise de página inteira, o jornal frisou: “Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade e de uma verdade dura. Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.(...) A História não é só uma descrição de fatos que se sucedem uns aos outros. É o mais poderoso instrumento para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los”.
Sim, pois a virtude não está apenas em ser virtuoso, jamais transgredir ou se equivocar, pautando-se em linha reta, sem curvas ou desvios. Nem em ser anjo esvoaçante, imune ao pecado e ao erro. Em pessoas e instituições, no público e no privado, a virtude maior é reconhecer o erro – quando se erra. Só a História nos salva ou nos absolve. Ao impor o medo e o terror, o golpe de 1964 gerou a subserviência e o oportunismo de “tirar vantagem”, viciando e contaminando a política. As sequelas estão à mostra nos escândalos crescentes, herdados dos hábitos perversos que a ditadura nos legou.
Num país em que se põe o cisco debaixo do tapete da sala, como se aí fosse lixeira e o lixo fosse relíquia a guardar, a postura de O Globo é admiravelmente inédita. É mais um caminho aberto à reconciliação desses quase 50 anos, para superar os recalcitrantes construtores de ódio, que – saudosos da ditadura – negam o passado.
E o “mea culpa” dos setores das Forças Armadas que deram o golpe de 1964?
Há muito, na Argentina e no Chile (onde o horror imitou Hitler, Stalin ou Pol Pot), os chefes militares pediram perdão pelo golpe de Estado e pelos atos dos ditadores. Agora, no Chile, os juízes reconheceram que o Judiciário omitiu-se na ditadura e se penitenciaram junto às famílias das vítimas. Dias antes, dois políticos de direita, o ministro do Interior, Andrés Chadwick, e o senador Hernán Larraín, haviam pedido “perdão” pelos crimes do ditador que apoiaram.
E nós? Seguiremos cegos, legando aos oficiais de hoje os erros e culpas dos antecessores?
Nas brigas amorosas, culpa e perdão se entrelaçam. Nas “razões de Estado”, é diferente. É o caso de Cimbri, Mainway e Dishfire, os três programas eletrônicos com que os Estados Unidos espionam tudo entre nós, da pasta dental da presidente Dilma a seus telefonemas, correios eletrônicos ou – por que duvidar? – até as conversas sigilosas no palácio.
Apesar do estilo mandão dos EUA, o Brasil foi sempre aliado leal, divergindo à luz do sol. Os parceiros, porém, nos tratam como inimigos, pois só se espiona o inimigo. No caso de amigos, a deslealdade de um rompe a amizade em si, ao tratar o outro como se inimigo fosse.
A Agência Brasileira de Informações tem nível de ministério, mas não sabia da espionagem nem da base de operações em Brasília. Se não fosse o ex-técnico da CIA Edward Snowden (a quem o Brasil negou asilo político) e o jornalista inglês Glenn Greenwald, pensaríamos que as três garotas de programa – Cimbri, Mainway e Dishfire – que a CIA meteu em nossas vidas, fossem apenas cisco debaixo do tapete.
*JORNALISTA E ESCRITOR
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