ZERO HORA, 23 de março de 2014
Qual a diferença entre “a
gauchada bárbara” do século 19 e
os “civilizados” do século 20?
FLÁVIO TAVARES*
O encanto de Joan Baez começa na voz e chega ao íntimo da alma como eco da solidariedade e da resistência à opressão. Nos anos 1970, eu estava no exílio, no México, e sua música defendeu a paz denunciando as atrocidades do exército do seu próprio país (os Estados Unidos) na guerra do Vietnã. Em plena violência da ditadura Médici, ela veio ao Brasil mas foi proibida de cantar à multidão que queria ouvi-la pregando o amor, não o ódio ou o horror. Dias atrás, noutro século, Porto Alegre aplaudiu a voz de Joan Baez e sua postura frente ao mundo: de pé, levantando-se das poltronas do Auditório Araujo Viana, a multidão fez coro com ela, pois “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Foi a mostra de que a História pode renovar-se em ciclos e superar a maldade do passado.
Mas a História que se renova em ciclos se repete como tragédia ou farsa. Em 1894, no quinto ano do Brasil-República, o coronel Firmino de Paula, comandante da Brigada Militar, mandou desenterrar o cadáver do líder maragato Gumercindo Saraiva (morto em combate na Revolução Federalista) para decapitá-lo e levar a cabeça ao governador do Rio Grande do Sul, como troféu. Dias atrás, o caso emblemático do horror da ditadura implantada em 1964 (o “desaparecimento” do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971) apareceu revelado por inteiro e revi o distante século 19.
Em testemunho ao jornal O Globo, um coronel do Exército explicou que, “por ordem do gabinete do ministro”, desenterrou em 1973 os restos de Rubens Paiva das areias da praia do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, (lá escondidos durante dois anos) e os lançou em alto-mar, para jamais serem encontrados. Encobriam, assim, a morte sob tortura no quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio, cuja ferocidade e horror eu conheci poucos anos antes, como preso político.
_ Havia ossos e uns pedaços de carne! _, contou o coronel sobre o ardil macabro.
***
Qual a semelhança ou diferença entre “a gauchada bárbara” do século 19 e os “civilizados modernos” do século 20?
A “gauchada” (que guerreava e, logo, ia tomar mate e churrasquear) sepultou o morto, sem o esconder nem mistificar. A barbárie indignante consistiu em desenterrar e decapitar, exibindo a cabeça inerte como símbolo de vitória. Os “civilizados” fizeram o mesmo caminho indignante, mas com propósito oposto. Em vez de exibir-se, ocultaram o crime, pois a ditadura feroz simulava ser benigna. Em vez de sepultar, esconderam o cadáver na areia. Mas o lugar era pouco seguro para ocultar o crime e 15 militares, “disfarçados de turistas sob imensas barracas”, cavaram a praia por duas semanas até encontrar os restos, colocá-los num saco e atirá-los em alto mar.
Implantaram o “crime perfeito” _ a simulação, em que o criminoso é sempre o outro. O autor do crime assiste tudo do terraço, tomando café ou uísque e mandando fazer de novo.
A simulação foi o legado perverso da ditadura implantada com o golpe de 1964, que agora completa 50 anos. Tantas raízes teve que persiste até hoje nos hábitos do poder político. Os escândalos (como os da negociata imunda da compra superfaturada pela Petrobras da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos) chegam, até, ao nosso inocente Trensurb da área metropolitana, numa mostra de que a política transformou-se em contínua mistificação, sem outra voz que o assalto.
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