QUEM SUPORTA A LIBERDADE?
Justiça

QUEM SUPORTA A LIBERDADE?


ANA PAUL BARCELLOS - O GLOBO, 01/07/2011

Vivemos em uma era estranha. A despeito do progresso, nos tornamos fracos e débeis, incapazes de lidar com um dos bens mais preciosos da humanidade: a liberdade. É certo que níveis extremos de pobreza, ignorância e exclusão inviabilizam o exercício da liberdade em muitos aspectos. Ironicamente, porém, pessoas que não enfrentam essas limitações parecem não estar dispostas a suportar a liberdade e suas consequências. Precisamos de alguém que decida como devemos viver e nos livre das opções arriscadas, das opiniões diferentes e da crítica, pois não somos capazes de conviver com elas. Caminhamos satisfeitos rumo a uma ditadura do "bem-estar", do saudável e do politicamente correto. Há muitos exemplos e algumas poucas reações.

Nos últimos anos, normas têm sido editadas por agências reguladoras a fim de restringir a publicidade e a comercialização de produtos considerados "maus" ou "não saudáveis": produtos a serem adquiridos por adultos, supostamente capazes. Já não se trata de informar os riscos associados a cada opção, o que seria perfeitamente adequado: liberdade envolve responsabilidade pelas consequências das escolhas, de modo que informação é vital para decisões conscientes. Trata-se, diversamente, de impor às pessoas determinadas escolhas. A ideia subjacente a essas políticas é simples: já que as pessoas são débeis e continuam a fazer opções ruins, mesmo diante das informações, vamos nós, os agentes públicos esclarecidos, escolher o que é "melhor" para elas.

Também tem se tornado frequente no país a tentativa de proibir determinadas opiniões. No âmbito do Legislativo, cogita-se da criminalização dos discursos que criticam as opções homossexuais: os religiosos são o alvo principal. O humor político esteve recentemente na berlinda, bem como as marchas que defendem mudanças na legislação sobre o consumo de maconha. As duas questões chegaram ao STF e a Corte reafirmou que tentativas de impedir tais manifestações violam a liberdade de expressão, garantida pela Constituição de 1988 e por tratados de direitos humanos. Não importa se se concorda ou não com o conteúdo do discurso: ninguém pode pretender ser o juiz do que pode ou não ser dito em uma sociedade democrática.

Não se ignora que, ao lado das ideias, existem também ações, que podem ser proibidas.

As marchas da maconha são permitidas, mas o consumo e a venda da maconha continuam ilegais. Vegetarianos podem pregar contra as redes de fast-food, mas não podem incendiar suas lojas. Humoristas podem fazer piadas com políticos e religiosos podem criticar a opção homossexual de acordo com a sua fé, mas ninguém pode agredir pessoa alguma sob qualquer pretexto. Eventualmente, a fronteira entre ideia e ação pode exigir um exame mais cuidadoso: nada, porém, com o que o Direito não esteja acostumado a lidar.

É verdade: somos fracos e débeis. Comemos mais açúcar e gordura do que deveríamos, fumamos e bebemos mais do que deveríamos e fazemos menos exercícios e estudamos menos do que deveríamos. Quem nos livrará de nossa própria fraqueza? O Estado? Não gostamos de crítica e seria ótimo se determinadas opiniões, que julgo absurdas, não existissem, mas tratar o outro com igual respeito e consideração exige reconhecer que ele é titular da mesma liberdade de manifestar todo tipo de opinião a que também tenho direito. A liberdade não garante que tudo será agradável e que todos os nossos desejos serão atendidos.

A liberdade de expressão existe para proteger ideias críticas e minoritárias: o elogio e a maioria não precisam de proteção. Na expressão de Voltaire: não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o direito de dizê-la. Se não há nenhuma novidade nessa afirmação multissecular, e se a Constituição protege a liberdade de expressão, qual o desconforto então? Somos tão frágeis que não podemos suportar críticas ou opiniões diferentes das nossas? Não somos capazes de expor nossa própria opinião, de dizer um simples não ou de resistir a determinadas possibilidades de escolha? Será que, para evitar o risco do desconforto, preferimos proibir a liberdade dos outros?

A liberdade real não é um bom parque de diversões, no qual a gente finge que é livre e faz opções, mas com os resultados garantidos: alguém está controlando os brinquedos para que ninguém se machuque e todos voltem felizes para casa. Não é possível ser livre e estar totalmente a salvo das consequências dessa liberdade. Não é possível ser homem e mulher e estar totalmente a salvo das consequências da humanidade.
ANA PAULA BARCELLOS é professora de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.



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