O URRO E A DORO jogador Arouca, do Santos, dava entrevistas ao final do jogo contra o Mogi Mirim, pelo Campeonato Paulista de futebol, quando começou a ser chamado de macaco por torcedores nas arquibancadas.
Arouca é um negro elegante, dentro e fora do campo de jogo, que ostenta orgulhosamente sua negritude no cabelo arrumado ao estilo rastafári.
Ao ouvir os gritos, desconcertou-se. Justamente naquela noite, em que tinha marcado o mais belo gol do jogo, e um dos mais belos da carreira, disparando um chute “de voleio”, com as duas pernas no ar, vinha a ser alvo do ódio selvagem.
A torcida do seu time o tinha saudado com o grito de “Arouca na seleção”.
Os imbecis da arquibancada agora diziam que seleção, para ele, só se for de país africano. O momento de desconcerto, em que interrompe a entrevista, se atrapalha e se cala, revela a enormidade do golpe. Antes de revolta, é a perplexidade que o toma.
Fora atingido por um raio.
Dias antes, o juiz Márcio Chagas da Silva, que apitava o jogo entre os times do Esportivo e do Veranópolis, pelo Campeonato Gaúcho, na cidade de Bento Gonçalves (RS), foi xingado por hordas que, não contentes, riscaram seu carro e o emporcalharam com cascas de banana.
A última do futebol brasileiro é, em troca dos jogadores que vende para a Europa, importar os xingamentos racistas que se ouvem por lá.
Como combater o racismo nos estádios? Como combater o racismo em geral? Não há resposta fácil para tais questões.
No caso de Arouca, a Federação Paulista de Futebol reagiu rápido, interditando o estádio do Mogi Mirim pelo tempo que durar um inquérito a respeito do ocorrido, com a possibilidade de a interdição se prorrogar dependendo das conclusões do inquérito. A medida foi contestada. A punição deveria se restringir aos culpados, não a toda uma coletividade.
Entre uma tese e outra, o colunista Hélio Schwartsman, da Folha de S. Paulo, apresentou uma terceira. Amparado no filósofo Stuart Mill, defendeu a ideia de que “mesmo os piores preconceitos precisam ter sua circulação assegurada”, para que, expostos à plena luz, possam ser contestados e vencidos.
De outro modo, as respostas a tais preconceitos arriscam ser percebidas elas próprias como “simples preconceitos, sem base racional”.
O argumento é inteligente, e impecavelmente coerente com a visão liberal de circulação o mais desimpedida possível das ideias.
Ocorre que, no caso do racismo, não se está tratando com seres racionais. Como vencê-los pelas ideias? Campanhas não faltam. No Brasil e no mundo espalhou-se a moda de exibir faixas e acender letreiros contra o racismo nos estádios.
Ao mesmo passo, multiplicam-se os atos de racismo. Dá até para desconfiar que as campanhas os estimulam.
“No Brasil e no mundo espalhou-se a moda de exibir faixas e acender letreiros contra o racismo nos estádios. Ao mesmo passo, multiplicam-se os atos de racismo. Dá até para desconfiar que as campanhas os estimulam” (Foto: Lucas Prates / Hoje em Dia / Gazeta Press)
Acresce que o racista do estádio não se exprime por ideias. Sua arma é o xingamento. Nessas circunstâncias, e considerando a habitual incapacidade dos investigadores brasileiros de individualizar os culpados, a interdição dos estádios é o que resta. A desproporção da pena é uma vantagem; garante a repercussão da punição.
Sobra, como ponto último e íntimo da questão, a dor de ser alvo de atos e palavras racistas. Outra vítima, o jogador Tinga, do Cruzeiro, num jogo recente contra o Real Garcilaso, do Peru, era saudado em uníssono com gritos imitando macaco toda vez que pegava na bola. Seu filho, segundo Tinga contou depois, assistia ao jogo pela televisão.
A muitos filhos e muitas mães tem ocorrido o mesmo. Esportistas, depois de uma jornada de triunfo, gozam da delícia de ser conduzidos ao sono pelo filminho em que passam e repassam a proeza do dia. Arouca, naquela noite, teve o filminho de seu voleio sufocado pelos gritos de “macaco”.
A peça Jesus Cristo Superstar está voltando ao cartaz em São Paulo trazendo no papel-título um ator com a estupenda cabeleira de sempre, corpo de atleta, pele clara e olhos que pelas fotos parecem claros. Os pintores do Renascimento terem elegido tal tipo para representar um judeu da Palestina do século I é racismo lá deles, que a história da pintura consagrou e o tempo apagou.
Já numa peça moderninha, que pretende apresentar um Jesus “humanizado”, insistir no modelo equivale a pecar pela base.