O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Justiça

O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA SOCIEDADE BRASILEIRA


ZH 20/09/2014 | 15h05

Especialistas discutem o papel do Judiciário na sociedade brasileira. Demasiada para uns, necessária para outros, atuação mais intensa do Judiciário tem pautado grandes questões sociais e comportamentais no país

por Itamar Melo




A estátua da deusa Justiça postada à frente da sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Foto: Carlos Humberto / SCO/STF


No começo dos anos 90, chegou à Justiça o caso de uma mulher de Porto Alegre que, depois de ser deixada pelo marido, trabalhou duas décadas como lavadeira, criou sozinha os cinco filhos e conseguiu amealhar alguns bens, incluindo uma casa. Agora, o homem estava de volta para pedir o divórcio e exigir metade do patrimônio que ela havia construído.

A lei dava razão ao marido. Dizia que o regime de bens instituído no casamento cessava apenas com a separação judicial. Não importava se o casal vivesse junto ou não. Responsável pelo caso, a juíza Maria Berenice Dias chegou à conclusão de que a legislação estava em conflito com o mundo real. Negou a divisão dos bens da lavadeira.

– Tomei uma decisão que parecia ser absolutamente contrária à lei. Mas fiz justiça, que é o compromisso do juiz – afirma Maria Berenice, hoje advogada.

No últimos anos, esse tipo de sentença, que surge em contradição com a lei ou estabelece novos direitos nos casos em que a lei é omissa, tornou-se corriqueiro. Em um primeiro momento inéditas e pioneiras, essas decisões se acumularam na forma de jurisprudência e em alguns casos provocaram até mesmo mudanças na legislação. Transformaram não só a Justiça, mas a própria sociedade brasileira. Foi a partir de decisões judiciais que o casamento dos homossexuais, o aborto de fetos anencéfalos e formas alternativas de família passaram a ser reconhecidos pelo Estado.

Posicionados na vanguarda desse processo, os juízes brasileiros se converteram em agentes de transformação social.

O protagonismo dos magistrados, chamado de ativismo judicial, tem com frequência feito avançarem nos tribunais agendas que não conseguem prosperar no sistema legislativo. Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família, acredita que os juízes ganharam importância por causa da “inércia” do Congresso Nacional:

– Quem tem feito o Direito de Família avançar no Brasil, por meio de decisões históricas, é o Judiciário. A lei não está acompanhando os costumes, porque qualquer tema que tenha conteúdo moral é reprovado no Congresso. Alguns dizem que o juiz está extrapolando sua função, que a função dele é julgar, não legislar. Mas eu não concordo. O Judiciário vem para proteger as minorias que não têm respaldo da lei. Se for esperar que a maioria seja a favor do casamento gay ou da multiparentalidade, isso nunca vai ser reconhecido.

A nova influência dos juízes desabrochou no Brasil com a Constituição de 1988, que introduziu uma série de garantias fundamentais a que se pode recorrer nos tribunais para ir além do que está na lei. Em nome do princípio da igualdade, por exemplo, os homossexuais puderam comparecer ao Judiciário em busca do direito ao casamento.

– Uma Constituição como a nossa cria facilidades para o juiz. Ela estabelece a união estável entre homem e mulher. Mas não veda a união estável entre pessoas de mesmo sexo. Não há proibição. Algum juiz pode fazer uma interpretação diferente, mas o avanço ocorre quando a parte que procura o Judiciário encontra um juiz que está, digamos, melhor preparado para fazer uma interpretação cidadã, uma interpretação que assegura direitos – afirma o juiz Roberto Lorea, que atua no foro central da Capital.

A partir de uma decisão pioneira, observa Lorea, outras sentenças no mesmo sentido se acumulam, consolidando uma jurisprudência. Segundo ele, esse processo impede que um magistrado imponha uma determinada agenda.

– O juiz pode ser um agente de transformação social. Acredito nisso. Mas não é um cara sozinho que faz uma loucura. Se houver uma decisão de primeiro grau, cabe recurso para o Tribunal de Justiça. Depois, cabe recurso ao STJ. As coisas vão acontecendo por meio de pequenos avanços, até que vira uma espécie de consenso. Não receio uma ditadura do Judiciário, porque existem pesos e contrafreios – afirma Lorea.

Maria Berenice Dias, responsável por várias decisões pioneiras, acredita que as sentenças polêmicas acabam por mudar também a sociedade:

– O papel do juiz não é julgar para servir de coisa emblemática. Isso é consequência. Ele julga de determinada maneira porque aquela é a decisão mais justa. Mas ele puxa a mudança na medida em que, se um juiz diz algo, as pessoas acolhem. Não vou afirmar que mude a sociedade, mas faz as pessoas refletirem.

O polêmico episódio de Livramento

O protagonismo assumido pelos magistrados ganhou contornos explosivos neste mês, com um casamento coletivo programado pela juíza Carina Labres em um CTG de Livramento. Um dos casais era formado por duas mulheres. Carina já vinha promovendo uniões gays, mas mexeu em um vespeiro ao levá-las para um reduto do tradicionalismo. O CTG foi incendiado, e o casamento foi para o fórum. A juíza não se abalou:

– Eu vim para fazer diferença, não para passar em branco pelas comarcas.

A ação da magistrada colheu elogios e críticas. Para a advogada e professora da PUCRS Ana Luiza Carvalho Ferreira, o que Carina fez foi agir de acordo com resolução do CNJ que obriga os cartórios a registrar casamentos gays:

– Além do cartório, ela fez uma celebração pública. Está correta? Sim. Se há previsão legal e não há vedação, os noivos podem escolher onde casar.

As ressalvas à ação de Carina não se direcionaram ao casamento gay, mas ao local de sua realização. O desembargador Alexandre Mussoi Moreira afirma que o papel do juiz é pacificar a sociedade, não agravar problemas:

– No caso das uniões homossexuais, não é questão de concordar. O direito evoluiu da maneira que está posta. Mas daí a tomar atitudes que confrontam a sociedade, isso é que se deve evitar. Os direitos têm de ser garantidos. O que a Justiça não precisa fazer é celebrar o contrato num CTG.

A juíza Rosana Garbin celebra a transferência para o fórum:

– Eu elogiaria o fato de ela ter transferido para o fórum, porque mostra que esse é um espaço em que essas situações são normais.



Entrevista: João Ricardo dos Santos Costa

Magistrado diz que só o Judiciário pode enfrentar questões polêmicas. Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros fala sobre o ativismo do Judiciário e o papel do juiz na sociedade



"A velocidade da demanda social supera a capacidade do legislador de corresponder aos fenômenos sociais" Foto: Nelson Jr. / SCO/STF


Na semana passada, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, João Ricardo dos Santos Costa, viajou a Santana do Livramento para apoiar a cerimônia de casamento coletivo em que foi celebrada a união de um casal homossexual. Na entrevista a seguir, ele afirma que o protagonismo de juízes como Carine Labres é inerente à magistratura e serve para contrabalançar o descompasso entre as demandas da sociedade e a capacidade do Legislativo de responder a elas:
Faz parte do papel do juiz ser um agente de transformação da sociedade através de suas decisões?
Isso ocorre na medida em que a velocidade da demanda social supera a capacidade do legislador de corresponder aos fenômenos sociais. Acaba o Judiciário tendo de regular as novas relações que se estabelecem. É isso que exige do Judiciário um protagonismo. Porque o juiz é quem vê o drama, quem vê a injustiça. Por exemplo, descobrem uma forma de curar tal doença. O Estado não libera as pesquisas, mas o juiz enxerga o doente. É o caso do componente da maconha cuja utilização e pesquisa tem sido autorizada por juízes. A partir do momento em que a tecnologia se desenvolveu e descobriram-se os efeitos de cura desse componente, houve uma demanda social por essa medicação. A sociedade não pode esperar. A sociedade tem pressa. E busca o Judiciário para garantir o direito.

Com frequência, esse descompasso entre a velocidade do legislador e a do juiz aparece em temas bastante polêmicos na sociedade, como os direitos do homossexual. O Legislativo, talvez por motivos eleitorais, não avança. É aí que os juízes acabam tendo um papel mais ativo?
Esse componente é importante. O legislador representa o povo, então é evidente que ele tem de atender à vontade do eleitor. No momento em que o eleitor é refratário a determinados avanços, como o aborto de anencéfalos, as pesquisas com células-tronco e a união homoafetiva, o legislador resiste também, porque atende à questão da representação eleitoral. Não estou dizendo que ele está errado. Mas é preocupante quando esse conservadorismo avança no Congresso Nacional e ocupa o Estado, como no caso da influência religiosa. O Estado é para todos, não para um determinado segmento. Uma crença não pode impor a regulação social para toda a sociedade. Essa é uma dificuldade do Legislativo brasileiro.

É papel do juiz contrabalançar esse tipo de influência?
O Judiciário serve exatamente para isso. Livre do compromisso constitucional que é a representação e munido da independência e das garantias que a magistratura tem, ele faz a adequação, o equilíbrio do sistema.

Nesse processo não existe o risco de que o juiz tome decisões que a maioria da sociedade não aceita?
Exatamente. Aí entra aquela linha muito delicada entre o ativismo e a garantia de direitos fundamentais. É nesse meio que o juiz tem de se equilibrar. Algumas medidas podem gerar uma substituição do legislador, o que não é recomendado. Mas vamos pegar o caso da união homoafetiva. Se lermos a Constituição como um sistema de garantias, que assegura a pluralidade, vemos que qualquer decisão a favor do direito de pessoas do mesmo sexo casarem está garantida. O juiz não está inventando a roda. Ele está aplicando a Constituição. O que é muito positivo é que todos os juízes brasileiros podem aplicar a Constituição nas suas decisões, diferente de alguns sistemas em que só a suprema corte pode fazer isso. É uma vantagem do nosso sistema.

Não é difícil determinar esse equilíbrio ao qual o juiz precisa chegar?
Algumas decisões chocam. Mas quando começa o debate sobre elas, com o aprofundamento da discussão pública sobre o fato, como no caso do CTG de Livramento, as coisas começam a ser mais entendidas pela sociedade. Em Livramento, vimos um exemplo bem típico. O Judiciário disse para a sociedade de forma bem clara: os espaços sociais não podem ser restritos a determinadas categorias de pessoas. As questões mais polêmicas acabam gerando perplexidade, mas só o Judiciário pode enfrentar situações polêmicas.

ATIVISMO DE TOGA
Algumas áreas em que os juízes tomaram decisões que estão ajudando a mudar a sociedade brasileira:


Multiparentalidade

Decisões judiciais recentes ampliaram os tipos reconhecidos de paternidade. Além do pai biológico ou que registra a criança, os juízes acolhem também a noção de pai socioafetivo – aquele que exerce efetivamente a função. Como se reconhecem três formas de paternidade, há filhos obtendo na Justiça o direito de ter dois pais ou duas mães. Nessa linha da multiparentalidade, o juiz de Santa Maria Rafael Pagnon Cunha tomou uma decisão inédita neste mês: determinou que uma recém-nascida tenha o nome do pai e de duas mães na certidão de nascimento. As mulheres formam um casal e acertaram a concepção da criança com o homem, que engravidou uma delas.

União homossexual
Desde os anos 1990, sentenças proferidas por juízes de todo o país passaram a conceder a casais do mesmo sexo direitos garantidos a casais formados por um homem e uma mulher. Essas decisões diziam respeito a questões como partilha de bens depois da separação, herança e inclusão como dependente em plano de saúde. Em 2011, esse processo culminou com o reconhecimento da união estável entre homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal. No ano passado, o Judiciário deu mais um passo: o Conselho Nacional de Justiça obrigou todos os cartórios a aceitar o registro de casamentos gays.

Componentes da maconha
Desde abril, juízes têm liberado a importação de canabidiol, uma substância encontrada na maconha que é proibida no país. Pesquisas recentes mostram que o canabidiol é eficaz no tratamento de diversas doenças. O primeiro caso de decisão judicial beneficiou uma menina de seis anos que sofre de epilepsia grave. A partir da ação do Judiciário, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) começou a liberar o remédio em dezenas de casos.

Aborto de anencéfalos
O Código Penal brasileiro, de 1940, permite o aborto apenas em caso de estupro ou risco de vida para a mãe. Com o desenvolvimento de exames que permitem avaliar a saúde do feto, começaram a chegar ao Judiciário pedidos de autorização para o aborto de anencéfalos (fetos sem cérebro), concedidos em vários casos. Em 2012, por oito votos a dois, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a interrupção da gravidez nesses casos não é crime – ampliando as situações em que o aborto é aceito.

Famílias simultâneas
Uma questão polêmica que começa a avançar e pode chegar em breve ao Supremo Tribunal Federal é o reconhecimento da existência de famílias simultâneas, superando o princípio da monogamia. Já começam a se acumular decisões que concedem direitos iguais aos dois núcleos. No ano passado, um juiz de Manaus reconheceu a união estável simultânea de um homem com duas mulheres, após a morte dele. Dois meses atrás, o Tribunal de Justiça do Maranhão tomou, de forma inédita, a decisão de reconhecer como união estável a relação que uma mulher manteve durante 17 anos com um homem casado. Ela ingressou na Justiça pleiteando direitos após o falecimento do amante.




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