por George Marmelstein LimaO propósito deste post é analisar uma possível evolução no conceito de liberdade. Indo direto ao ponto: defenderei que a liberdade deixou de ser um direito cujo exercício estaria condicionado ao respeito à lei para se transformar em um limite jurídico ao próprio legislador. Se antes um comportamento contrário à lei era visto como um abuso da liberdade, hoje, em determinadas situações, a desobediência à lei pode ser considerada juridicamente legítima, desde que se reconheça que o legislador interferiu arbitrariamente em uma esfera pessoal protegida pela liberdade e, portanto, imune ao controle estatal. Para compreender essa mudança de sentido da liberdade conforme à lei para a lei conforme à liberdade, e as consequências de tal (r)evolução, é preciso aprofundar um pouco mais…
A ideia de que o ser humano deve ser o autor da própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo é recente. Foram os pensadores liberais da modernidade, especialmente Locke e Kant, que desenvolveram com mais profundidade essa concepção de liberdade fundada na autonomia pessoal. Antes disso, a concepção de liberdade que se tinha era aquela que Benjamin Constant designou de “liberdade dos antigos”, que nada mais era do que a liberdade de participação na vida pública. O cidadão da Antiguidade era livre para deliberar sobre a decretação de uma guerra, mas não era livre para escolher sua religião, nem mesmo para cuidar do seu filho. Quase todos os aspectos da vida privada – da família ao lazer, da propriedade ao trabalho, da religião ao comércio – eram de algum modo controlados pela polis, como bem demonstrou Fustel de Coulanges em seu indispensável A Cidade Antiga.
A passagem da “liberdade dos antigos” para a “liberdade dos modernos” envolve o amadurecimento da ideia de laicidade do estado. De fato, quando os papéis do estado e da religião sobrepunham-se, pouco restava ao indivíduo em termos de autonomia. O estado, através da legislação, institucionalizava abertamente a moral religiosa, utilizando a força das instituições para impor um padrão moral uniforme para toda a sociedade. A pessoa era obrigada a renunciar as suas convicções quando esta se chocava com os valores oficialmente impostos. A derrocada do álibi teológico que dava suporte ao estado, justificando as mais arbitrárias interferências estatais na vida privada, possibilitou a valorização da liberdade no sentido moderno, influenciada, no campo teórico, pela sublimação da autonomia como parte integrante da dignidade humana. Em palavras menos rebuscadas: o estado perdeu grande parte de sua legitimidade para agir como um sacerdote moral da sociedade, proporcionando a abertura necessária para que o indivíduo começasse a assumir a condição de sujeito ético responsável por suas escolhas e ações.
Mas os pensadores liberais modernos, mesmo exaltando a autonomia pessoal e reconhecendo a íntima conexão entre o poder de autodeterminação individual e a dignidade do ser humano, não foram capazes de desenvolver uma fórmula institucional apta a garantir efetivamente a proteção da liberdade individual. No fundo, a liberdade era sempre submetida à obediência à lei, de modo que o ser humano “livre” era obrigado a respeitar incondicionalmente as leis aprovadas pelo “corpo do povo”. As primeiras declarações de direitos, ao incorporarem a noção de liberdade como direito natural, quase sempre submetiam o exercício do direito ao respeito à lei. A técnica da reserva legal (“o direito X será exercido nos termos da lei”) tornou-se o padrão dessas primeiras declarações de direito. Desse modo, a liberdade não tinha a força de limitar verdadeiramente o legislador. Na verdade, o legislador era “livre” para limitar a liberdade como bem lhe aprouvesse. O velho princípio de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei” é a consagração dessa ideia. No fundo, o que esse princípio estabelece é apenas um obstáculo formal à restrição da liberdade, exigindo que as obrigações involuntárias decorram de lei, mas sem impor nenhum empecilho forte ao legislador no que concerne ao conteúdo da legislação aprovada. Um dos poucos pensadores modernos a reconhecer que a tirania do legislador deveria ser combatida foi Locke. Porém, seu modelo tinha pouca valia prática, pois se baseava num direito de resistência do indivíduo oprimido contra a força do estado, sendo notório que a assimetria de poder torna inócua a resistência individual. Além disso, ao fim e ao cabo, quem tinha a última palavra para arbitrar os conflitos entre o indivíduo e o estado era o corpo do povo, guiado pela vontade da maioria, cujo potencial opressivo é tão grande quanto o do próprio estado. Vale lembrar que, em Locke, ao legislador é conferido o status de “poder supremo”.
Um passo influente para mudar o conceito moderno de liberdade foi dado por John Stuart Mill que, no seu On Liberty (1859), desenvolveu uma ideia de liberdade como princípio de legitimação estatal fundamentado para além da lei. Para Mill, a única justificativa capaz de legitimar a restrição da liberdade seria para evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros. Tem-se aí o chamado princípio do dano, que traduz um critério de intervenção estatal na liberdade relativamente simples, mas poderoso. Por essa fórmula, qualquer restrição da liberdade, inclusive através da lei, que não tenha por escopo evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros seria ilegítima. O potencial revolucionário dessa ideia é notório. Basta imaginar, por exemplo, a regulamentação dos costumes presente no código penal, o tratamento jurídico da família constante no código civil, a proibição da eutanásia, da poligamia, da homossexualidade e assim por diante. Basicamente, uma conduta sem vítimas efetivas ou potenciais, isto é, que não interfira negativamente na esfera alheia, não poderia ser objeto de censura jurídica.
Embora o princípio do dano possa ser alvo fácil de diversas objeções (pense, por exemplo, na proibição de comércio de órgãos humanos ou na obrigação do uso de cinto de segurança), não há dúvida de que um grande passo foi dado para superar a velha noção de que o exercício da liberdade só é legítimo se for conforme à lei. Com Mill, é a própria lei que poderá deixar de ser legítima se não respeitar a liberdade.
A concepção de liberdade como limite ao legislador demorou bastante para ser incorporada ao pensamento jurídico. Na verdade, até hoje, ainda não se sabe com precisão até onde vai o poder de negar validade a uma lei que viole arbitrariamente a liberdade, até porque toda lei, em essência, restringe o exercício da liberdade. O certo é que o avanço do constitucionalismo, da jurisdição constitucional, dos direitos fundamentais criou um ambiente propício ao desenvolvimento dessa nova concepção de liberdade como limite ao legislador. Um dos marcos mais relevantes dessa concepção foi estabelecido no casoGriswold v. Connectutti, em 1965, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Naquele julgamento, uma lei estadual que proibia a compra e venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional por violar a autonomia privada, vale dizer, o direito dos casais de decidir sobre relações sexuais e reprodução. Depois disso, o mesmo princípio já foi invocado para anular leis que criminalizavam a sodomia, ou seja, a prática de relações sexuais entre adultos (caso Lawrence vs. Texas, de 2004), a proibição da eutanásia passiva (caso Cruzan v. Director, MDH, de 1990) e até mesmo a liberdade de escolha da mulher de interromper a gravidez nas primeiras semanas de gestação (caso Roe vs. Wade, de 1972). Em todos esses casos, o parâmetro de anulação da lei foi idêntico: a autonomia privada como limite ao legislador.
Falar em limite ao legislador é reconhecer um parâmetro de validade jurídica superior à lei. O poder político, nesse sentido, não teria legitimidade para interferir em uma determinada zona de privacidade pessoal, ainda não bem definida, mas claramente protegida contra os arroubos do legislador. Na sua influente teoria da justiça, John Rawls trouxe essa ideia para dentro do primeiro princípio de justiça, estabelecendo que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras. Assim, a restrição da liberdade somente seria justificada como forma de garantir o exercício simultâneo da liberdade pelos diversos membros da sociedade. Usando uma linguagem diferente, mas com propósitos semelhantes, Ronald Dworkin, no seu último livro “Justice for Hedgehogs”, defende a existência de um direito fundamental à independência ética, consistente em um direito da pessoa de tomar decisões refletidas, no autêntico exercício de sua autonomia. Assim, ninguém teria o direito de usurpar do sujeito ético a sua capacidade de ser o autor de própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo. Esse direito geraria para a pessoa um poder institucional de resistência, ou seja, um poder de questionar a validade jurídica da lei perante os órgãos responsáveis pelo controle de constitucionalidade.
Certamente, ainda falta muito para que alcancemos um nível de maturidade institucional em que a liberdade – como proteção da autêntica autonomia – seja reconhecida como um verdadeiro limite ao poder estatal. A possibilidade de discutir, perante órgãos do próprio estado, a validade jurídica de uma lei contaria à liberdade, embora constitua um avanço, certamente ainda é um mecanismo demasiadamente frágil de emancipação do sujeito ético contra o estado. De qualquer modo, é notória a evolução que tem ocorrido. Claramente mudamos o sentido da liberdade. Se, antes, a liberdade era conformada pela legalidade, hoje, pelo contrário, é a legalidade que está cada vez mais sendo conformada pela liberdade.
http://direitosfundamentais.net/2014/04/02/liberdade-contra-a-lei/