É A MULTIDÃO QUE COMANDA A HISTÓRIA
Justiça

É A MULTIDÃO QUE COMANDA A HISTÓRIA


ZERO HORA 08 de junho de 2014 | N° 17822

ENTREVISTA


Entrevista com Antonio Negri*



Em passagem pelo Estado para a conferência de abertura do 14º Congresso Internacional do Orçamento Participativo, em Canoas, nesta semana, o filósofo italiano Antonio Negri conversou com o caderno PrOA sobre o primeiro ano das manifestações de junho.

Convicto de que “cada país tem a polícia que merece”, o pensador marxista, que completará 81 anos em agosto, defende a potência dos movimentos de resistência da multidão. A seguir, a síntese da entrevista (a íntegra pode ser lida em zerohora.com)

O senhor define multidão como um conjunto de singularidades que não é representável, sendo ao mesmo tempo sujeito e produto da prática coletiva. Como essa multidão se organiza, num mundo marcado pela crescente fragmentação? O que provoca o levante da multidão, como ocorreu no Brasil em 2013?

Antonio Negri – A multidão se organiza em torno dos eventos do momento, nos quais uma linguagem comum se expressa. Uma linguagem comum que nasce da indignação e do protesto, do cansaço de sempre se encontrar em situações que não têm saída. É exatamente como era antes, com a classe operária. A multidão se organiza à base de paixões que caminham com a resistência e com tentativas de construções de uma perspectiva de uma nova via de solução dos problemas. Não há muita diferença do ponto de vista entre a multidão e todos os outros movimentos que nascem da base de necessidades ou anseios fundamentais de se viver e produzir. Mas há um outro elemento que é a singularidade. Quando a multidão se move, nunca é simplesmente uma massa, é uma riqueza plural de elementos de questionamentos de vida. É claro que aqui nasce um problema de organização. Há um grande problema de unidade, de articulação dos movimentos, em meio a muitas singularidades. Mas esta é também a riqueza, a beleza do processo que vivemos.

Como as manifestações de junho de 2013 no Brasil se inserem no contexto internacional, no ciclo de reações como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street?

Negri – É difícil precisar. Os movimentos surgem a partir de um clamor por democracia substancial. É claro que, no Brasil, teve um estranho curto-circuito entre um discurso político que foi pregado pelo PT aos jovens, e depois esse discurso se encontrou diante de obstáculos, como o custo da passagem. Isso foi interpretado como uma espécie de provocação, como esses enormes gastos com os megaeventos, gastos que parecem não dizer respeito à vida das pessoas. É preciso considerar também que a multidão está inserida em um processo vital e metropolitano. Pode-se dizer que a classe operária estava para a fábrica como a multidão hoje está para a metrópole. A multidão tem uma sensibilidade particular aos serviços metropolitanos, o bem-estar nas metrópoles contemporâneas e, portanto, vai em busca dessas coisas. Assim nasce a luta, a resistência, mas, também, uma proposta de felicidade.

O senhor propõe a alegria como um dos elementos da luta política. Mas ao mesmo tempo a violência tem aparecido como um aspecto importante das manifestações. Como se relacionam esses dois aspectos, a alegria e a violência?

Negri – A alegria e a violência não andam juntas, mas cada país tem a polícia que merece. O problema é que aqui a polícia é acostumada a matar os negros, os pobres. Uma coisa que precisa ser dita, que é inútil esconder, é que o Brasil não tem uma guerra externa, mas tem uma guerra civil interna contra a sua população, que é organizada pelo Exército. Quando se lê que um militar que ocupa uma favela e comete um desrespeito vai ser julgado por um tribunal militar, é uma coisa que é totalmente fora dos direitos humanos.

Com a mudança dos antigos modos de produção pelo trabalho imaterial, o senhor aponta a necessidade de novas formas de organização política. O que está nascendo a partir do conjunto de manifestações?

Negri – Não sei. Por exemplo, na Europa, não há dúvida que começam a nascer novas formas de política, nas quais, é muito interessante isso, se unem os pobres e os “precários”, dentro dessa crise capitalista. O “precariado” é caracterizado pelo trabalho flexível e móvel, cada vez mais precário, sem contratos, ao mesmo tempo em que é ultraqualificado. E esse novo proletariado se une àqueles que são os extratos mais pobres da sociedade, aqueles que são excluídos pela crise do Estado de bem-estar social. Então nos encontramos diante de uma nova forma de organização. Por exemplo, na sociedade, se assiste à construção de uma série de formas de cooperação novas, que nascem em contraste com a velha tradição do velho movimento operário, socialista. Aí surge o que nós chamamos de movimento sindicalista social, que não é mais sindicalismo de fábrica, é um sindicalismo da sociedade.

Em termos de futuro, para onde a multidão caminha?

Negri _ Não há um determinismo. Eu não chamo isso de futuro. Há um porvir. Existe um tempo aberto diante de nós, que depende de para onde caminhamos, que quer dizer encontrar o algoritmo de conjunção desta rede enorme de atos, de gestos e de linguagem que constituem a multidão. É a multidão que comanda a história. Esse é o conceito fundamental.

*Filósofo político italiano, autor de obras como Império (2000) e Multidão (2004), em parceria com Michael Hardt



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