ENTREVISTA
Entrevista com Vladimir Safatle*Para o filósofo Vladimir Safatle, o primeiro passo para pensar melhor o Brasil é superar a “mania-depressão” em que os brasileiros oscilam, ora achando que são os melhores, ora os piores do mundo.
Em entrevista por telefone, o professor da USP analisa o legado das manifestações de junho. Ao mesmo tempo em que comemora uma “latência do possível”, identifica um vazio.
– A gente está num momento de vazio político que o Brasil nunca conheceu. Desde 1930 você tem ciclos políticos no Brasil em gestação. Agora temos um ciclo que se esgotou e não tem nenhum outro no lugar _ observa.
Na época das manifestações, o senhor afirmou que uma sociedade que passa por tamanhas mobilizações fica para sempre marcada. Qual é a marca mais visível neste primeiro ano?Safatle – Ficou a abertura de um campo de instabilidade e de indeterminação na política brasileira. Em maio de 2013, se alguém chegasse e dissesse: daqui a um mês nós vamos ver 1 milhão de pessoas na rua, essa pessoa seria vista como uma caricatura. Hoje ninguém tem coragem de dizer que não é possível. Então abre uma latência do possível. Há muito mais coisas possíveis do que antes. E acho que isso é um dado muito importante, porque através da abertura dessa latência novas experiências políticas podem ser paulatinamente formadas. A gente tem uma ideia meio instantaneísta das ações, de achar que uma ação produz o seu efeito no instante em que ela aparece. E nem sempre é assim. Às vezes ela demora muito tempo para produzir de fato seus efeitos.
Quais as diferenças entre os protestos em 2013 e agora?Safatle – Os de agora ainda não têm muita cara, porque estão no início. A gente não sabe de fato quais são os protestos de agora. A gente viu alguma coisa aqui em São Paulo, em algumas outras cidades, algo muito pontual. Falar qualquer coisa neste momento seria muito temerário. Mas uma coisa é certa: a gente está numa situação em que tudo pode acontecer, inclusive nada. Mas pode acontecer qualquer coisa, haja visto o aparato militar que o governo montou, com medo de que aconteça.
Há como prever alguma direção para o futuro?Safatle – Com certeza a gente está indo para uma situação melhor do que antes. Faz parte da política brasileira que ela se decida em grande medida nas ruas. A gente teve um momento nos últimos 20 anos de estabilidade, graças aos governos Lula e Fernando Henrique. Mas nos anos 1980 tinham greves gerais no Brasil, tudo parava. Nos anos 1960, o Brasil era um país de alta mobilização, tanto à esquerda quanto à direita. Então eu diria que estamos simplesmente voltando para esse padrão de atuação política, que parece muito melhor, porque não é o padrão dos lobbies, dos acordos partidários escondidos, dos conchavos eleitorais.
Depois de seu nome ter sido substituído na candidatura do governo de São Paulo sem aviso prévio, o senhor fez críticas contundentes à direção do partido e defendeu a necessidade de “uma esquerda não dirigista”. O que fica dessa experiência pessoal?Safatle – Primeiro, o PSOL é um partido de muitas tendências, muito diferentes uma das outras. Isso pode parecer um problema, mas também pode aparecer como uma força. Existe uma militância muito ligada à juventude no PSOL que tem uma consciência muito clara da necessidade de inventar um novo tipo de organização, que não seja simplesmente a repetição de velhos vícios de organizações de esquerda. Acredito que boa parte da desconfiança da população em relação à esquerda se dá por isso: para você ter legitimidade do que você fala, você tem que mostrar que é capaz de fazer dentro da sua casa o que se propõe a fazer fora de casa. E isso falta, em larga medida. Você não pode propor uma prática profundamente democrática se você, enquanto organização, está longe de ter democracia interna.
Qual é o maior desafio de um filósofo na política partidária?Safatle É entender que a filosofia não produz acontecimentos, os acontecimentos são produzidos fora, e nós procuramos ir onde o acontecimento está. Por que aceitei uma coisa dessas? Porque sempre houve dois tipos de intelectual, ou pelo menos hoje é assim: os que são ligados a suas especialidades, e falam a partir delas; e os que se transformam em intelectuais orgânicos, totalmente vinculados às pautas de partidos. Um muito longe, um muito perto do processo. E eu acreditava que era possível fazer alguma coisa no meio do caminho. Eu ainda acredito que isso seja possível, necessário.
Na Europa, vê-se a ascensão da extrema direita, em parte associada a uma desilusão com as políticas de esquerda. Esse movimento o preocupa?Safalte – Acho que é um dos movimentos mais sérios e graves da história nos últimos 40 anos. Essa extrema direita não veio para ir embora. Isso não é um ponto fora da curva. É um processo que está em crescimento contínuo há pelo menos 10 anos. Eles vieram para ficar, porque é uma direita popular. Não é a direita clássica, ligada a certos setores, sistema financeiro. É uma direita inclusive capaz de mobilizar algumas políticas de esquerda para continuar com sua lógica de exclusão, de paranoia identitária, de xenofobia. É realmente fascista. Mais uma vez, a Europa demonstra que em situações de crise ela não tem outra resposta a não ser realimentar as suas paranoias identitárias, como um sistema defensivo, ao invés de reinventar sua política socioeconômica.
O Brasil tem vivido um espírito de ame-o ou deixe-o. Em que ponto o senhor se alinha?Safatle – O Brasil sofre de um transtorno bipolar, a gente vive da mania-depressão. Tem momentos em que se acha que o Brasil é a nova Roma, como dizia o Darcy Ribeiro, que vai mostrar ao mundo o caminho da transformação. E tem momentos em que você acha que o Brasil é a catástrofe mundial, o país onde tudo dá errado. Esse tipo de bipolaridade, que também afeta os intelectuais, deveria ser superado. O Brasil tem uma história de resistência inacreditável, e tem várias oportunidades perdidas, como todo grande país. Se você conseguir escapar desse tipo de acepção, talvez consiga pensar melhor o Brasil.
*Professor de filosofia da USP e autor de livros como A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome, Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento e Cinismo e Falência da Crítica