CONTRA O TERROR, A VOZ DA RUA
Justiça

CONTRA O TERROR, A VOZ DA RUA




ZERO HORA 12 de janeiro de 2015 | N° 18040


MILHÕES MARCHAM NA FRANÇA



MANIFESTAÇÃO EM PARIS colocou lado a lado os principais líderes europeus e representantes do Oriente Médio à frente de uma histórica manifestação que ocupou as ruas da capital francesa sob as bandeiras da liberdade de expressão e da tolerânciaDe braços dados e semblante fechado, líderes de diversos países e familiares das vítimas dos recentes ataques terroristas na França lideraram 1,5 milhão de pessoas em uma marcha histórica no frio domingo de Paris. “Eu sou Charlie, judeu, policial!”, “Liberdade, igualdade, desenhem e escrevam!”, “Sou muçulmano, mas não terrorista!” Essas e outras frases expressas pela multidão davam o tom da homenagem aos 17 mortos nos ataques à revista Charlie Hebdo, na quarta-feira passada, a uma policial na quinta-feira e a uma mercearia judaica na sexta-feira.

A caminhada, iniciada na Praça da República pouco antes das 15h30min (12h30min em Brasília), teve um rigoroso esquema de segurança com 5,5 mil policiais e militares. O premiê israelense, Binyiamin Netanyahu, e o presidente palestino, Mahmud Abbas, estavam a poucos metros um do outro.

No ato, foi sentida a ausência do ministro marroquino das Relações Exteriores, Salaheddine Mezouar, que enviou suas condolências à França, mas não compareceu à marcha “em razão da presença de charges blasfematórias” ao profeta do Islã, Maomé no evento, segundo comunicado oficial divulgado pela embaixada marroquina. A ausência de líderes dos Estados Unidos também foi percebida – o embaixador americano na França compareceu à manifestação. O Brasil foi representado pelo embaixador em Paris, José Bustani.

Aos pés da estátua que simboliza a República, homens e mulheres de várias idades, origens e religiões marcaram presença. Momentos de silêncio foram intercalados com cantos – a Marselhesa, hino francês, foi entoada em vários momentos – e palavras de ordem. Diferentemente do clima de terror dos últimos dias na cidade, o ambiente era descontraído. Sorridentes, as pessoas puxavam papo com desconhecidos.

Ao longo da passeata, alguns dirigentes saudaram os moradores de imóveis próximos e foram aplaudidos pela multidão. Meia hora depois do início da marcha, líderes mundiais e personalidades políticas francesas fizeram um minuto de silêncio em homenagem aos 17 mortos. Logo depois, os dirigentes começaram a se retirar da manifestação, enquanto o presidente francês permaneceu no local, entre os manifestantes, e saudou e abraçou familiares das vítimas dos terroristas.

– Paris é, hoje, a capital do mundo. Todo o país se erguerá com o melhor que tem – declarou o presidente francês, François Hollande. – Esta manifestação deve demonstrar o poderio e a dignidade do povo francês, que vai gritar seu amor pela liberdade e a tolerância.

Após a manifestação, Hollande e Netanyahu foram ovacionados ao entrarem na Grande Sinagoga de Paris. Os dois líderes participaram de uma cerimônia em homenagem a “todas as vítimas” dos atentados de Paris, entre elas quatro judeus mortos na sexta-feira por Amedy Coulibaly em um supermercado de produtos judaicos na capital francesa. Netanyahu declarou que aprecia a “posição muito firme” da França e a “determinação” do presidente francês contra o “novo antissemitismo” e o “terrorismo”. O israelense ressaltou ainda que o “inimigo comum é o Islã radical”, e “não o Islã normal”.

AÇÕES CONTRA O TERRORISMO

Atos similares ocorreram em diversas cidades do mundo, especialmente na França – estima-se que 3,7 milhões de pessoas foram às ruas no país ontem. Na pequena cidade francesa de Dammartin- en-Goele, onde os irmãos Said e Cherif Kouachi, supostos autores do ataque contra a Charlie Hebdo, morreram em um enfrentamento com a polícia na sexta-feira, 10 mil pessoas manisfestaram-se contra o terror. O partido de extrema-direita Frente Nacional, presidido por Marine Le Pen, não participou da marcha em Paris e se manifestou em Beaucaire, cidade de 16 mil habitantes no sul do país.

Antes da marcha nas ruas, ministros do Interior de 12 países europeus e o secretário americano da Justiça, Eric Holder, acertaram reforçar a luta contra o terrorismo e marcaram uma reunião para o dia 18 de fevereiro, nos EUA. Entre as medidas previstas estão a intensificação dos controles das fronteiras externas da União Europeia e o intercâmbio de dados de passageiros de vias aéreas.

O ministro do Interior espanhol, Jorge Fernández Díaz, defendeu uma modificação do Tratado de Schengen para permitir controles nas fronteiras dentro do espaço europeu para limitar a mobilidade de combatentes islâmicos de volta à Europa. O Tratado de Schengen instaurou a livre circulação entre os 26 Estados signatários, entre eles 22 da União Europeia. A Bélgica sugeriu uma lista de estrangeiros ligados a grupos islâmicos.

Os ministros consideraram indispensável estabelecer parceria com provedores de internet para identificar e retirar rapidamente “os conteúdos que incitam o ódio e o terror”, segundo a nota oficial distribuída após o encontro.


Em vídeo, sequestrador se declara a serviço do EI


MORTO APÓS INVADIR uma loja judaica e fazer reféns na sexta-feira, Amedi Coulibaly afirma, em gravação divulgada ontem, ter ligações com irmãos Kouachi, que atacaram a revista Charlie HebdoEm vídeo divulgado na internet ontem, um homem que se identifica como Amedi Coulibaly reivindica ter assassinado a policial Clarissa Jean-Philippe na quinta-feira passada, em Montrouge, a sudoeste de Paris. Coulibaly também é responsável pela invasão de um supermercado judaico na capital francesa, onde manteve pessoas sob seu poder. Ele acabou morto na ação policial que invadiu o estabelecimento, onde também tombaram quatro dos reféns. Autoridades confirmaram a autenticidade do vídeo e a polícia trabalha a fim de precisar a origem de sua divulgação.

Na filmagem, de pouco mais de sete minutos, o homem diz ter cometido o crime “em nome do Estado Islâmico” e assegura ter coordenado suas ações com os irmãos Said e Cherif Kouachi, suspeitos do ataque à revista Charlie Hebdo no qual foram mortas 12 pessoas. Segundo ele, as ações foram tomadas em conjunto para ter mais impacto. Coulibaly também se identifica como Abu Basir Abdala al Ifriqi e aparece nas imagens cercado por armas automáticas enquanto fala francês e árabe e tenta justificar os atentados. Ele ameaça os países que fazem parte da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos que ataca a milícia Estado Islâmico (EI) no Iraque e na Síria.

– Vocês atacam o Califado, vocês atacam o Estado Islâmico, nós atacamos vocês – diz no vídeo.

LIGAÇÕES COM REDE AL-QAEDA

Coulibaly já havia afirmado em entrevista a uma rede de TV francesa na sexta-feira, enquanto mantinha mais uma dezena de pessoas com reféns, que tinha atuado em conexão com os irmãos Kouachi. No entanto, o suspeitos do ataque à revista teriam dito pertencer à rede Al-Qaeda na Península Arábica (Aqpa). Ontem, o secretário de Justiça e procurador-geral dos Estados Unidos, Eric Holder, disse que “não há informação confiável” de que a Al-Qaeda esteja envolvida nos ataques de Paris.


Redação de jornal alemão que reproduziu charges é atacada

A sede do jornal alemão Hamburger Morgenpost foi atacada ontem, na cidade de Hamburgo. A publicação reproduziu caricaturas de Maomé feitas pela Charlie Hebdo, um dia após o atentado na revista francesa. Segundo a polícia local, pedras e uma bomba foram atiradas nas janelas da redação do jornal. Não houve feridos, e o fogo foi controlado rapidamente. Duas salas do andar térreo foram danificadas. Duas pessoas foram detidas, segundo a polícia, que está investigando se o ataque tem mesmo relação com as charges.

Na Bélgica, a redação do jornal Le Soir, em Bruxelas, foi evacuada ontem após um telefonema anônimo com uma ameaça de ataque a bomba, anunciou a redação. Toda a Rua Royale, onde fica o jornal, foi isolada pela polícia, acrescentou a agência de notícias Belga.

Em um sinal de apoio a Charlie Hebdo, uma revista católica e um site judeu publicaram charges da publicação ironizando, respectivamente, Jesus, o Papa e o Holocausto e os judeus. “Decidimos colocar on-line algumas caricaturas da Charlie Hebdo que se relacionam com o catolicismo. É um sinal de força ser capaz de rir de algumas características das instituições a que pertencemos. O humor na fé é um bom antídoto para o fanatismo”, explica a revista jesuíta Études, criada em 1956, em um breve editorial ilustrado pela já famosa hashtag “Je suis Charlie” (Eu Sou Charlie) sobre um fundo negro.

O Jewpop, um site cultural judeu muito popular, publicou uma das mais famosas charges da revista, de 1978, que mostra Hitler saltitante com a legenda “Hitler supermaneiro” e um balão em que o nazista diz: “Olá, judeus! E aí?”.

– Nossos pensamentos hoje estão com todas as vítimas do ataque e suas famílias – disse o diretor do site, Alain Granat.

Dois heróis anônimos que salvaram vidas na França

O gerente de uma gráfica que protege sua funcionária dos jihadistas e um muçulmano que escondeu judeus em um supermercado judaico. Foram esses os heróis anônimos que enfrentaram os terroristas responsáveis pelos ataques na região parisiense na semana passada.

Na sexta-feira, às 9h30min, Cherif e Said Kouachi, os dois homens mais procurados da França, invadiram a gráfica de Dammartin-en-Goele. No primeiro andar, o gerente da pequena empresa Michel Catalano, 47 anos, os viu chegar. Imediatamente, saiu para procurar seu desenhista gráfico, Lilian Lepère, 26 anos, “para dizer que se escondesse”. O jovem se refugiou, escondido debaixo da pia do refeitório.

– Eles estavam subindo a escada quando fui encará-los. Tentei falar com eles para ganhar tempo, para que Lilian tivesse tempo de se esconder – contou Catalano.

Os irmãos Kouachi, que não queriam fazer reféns, deixaram Catalano sair. O assistente nunca chegou a ser descoberto pelos fugitivos. Por mensagem de SMS, ele passou informações cruciais à polícia, que matou os irmãos mais tarde.

No supermercado judaico de Paris, um funcionário de origem malinesa e muçulmano praticante, Lassana Bathily, 24 anos, ajudou os clientes assustados a se esconder dentro da câmara frigorífica, também na sexta-feira.

Pouco antes das 13h, Amedi Coulibaly, invadiu o local e abriu fogo contra funcionários e clientes. Um grupo de pessoas, inclusive uma criança pequena, correu pela escadaria no fundo da loja para se esconder na câmara frigorífica. Lassana abriu a porta para eles.

– Ouvi tiros. Depois, vi meu colega e clientes descendo as escadas e disse a eles: venham aqui! Eu os fiz entrar na câmara!

Lassana tomou o cuidado de desligar o sistema de refrigeração e depois propôs fugirem pelo elevador de carga, mas ninguém se animou a correr o risco. Então, fugiu sozinho.

– Fiz todos os mapas” do mercado aos policiais para ajudá-los a preparar a invasão – explicou Lassana.


ENTREVISTA POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO

DOMINIQUE VIDAL - “A resposta principal deve ser social”


Autor de livros sobre as banlieues (subúrbios franceses onde se concentram imigrantes), o Oriente Médio e o Holocausto, o historiador, jornalista e escritor francês Dominique Vidal diz que a França está doente, mas não em razão dos imigrantes ou do islamismo, e sim da exclusão econômica e social e que, com a guerra, “não se ganha nada”.

Por telefone, de Paris, Vidal conversou com Zero Hora na manhã de sábado. A seguir, uma síntese da entrevista:

Como o senhor define o ataque à revista Charlie Hebdo e seus desdobramentos?

É a mais grave ação terrorista perpetrada na França no último meio século. É preciso remontar à Guerra da Argélia para se encontrar uma ação tão grave como essa, em particular contra jornais e jornalistas. Portanto, é um acontecimento importante e grave.

O senhor é Charlie?

Eu diria que sim e não. Sim, por razões evidentes, ou seja, o atentado contra Charlie Hebdo se tornou um símbolo do ataque à liberdade de expressão. É por isso que muitas pessoas dizem hoje “Eu sou Charlie” na França e no mundo. E diria também que não, na medida em que esse horrível atentado não pode barrar o debate com Charlie e com sua redação, notadamente sobre a maneira de tratar a religião em geral e a religião muçulmana em particular. Portanto, eu diria sim e não.

O problema é o Islã?

Certamente não. O que foi perpetrado na quarta-feira, mas também na sexta-feira, com a tomada de reféns na loja kosher em Porte de Vincennes, em Paris, é a ação de uma minoria ínfima. Há dezenas, talvez centenas de jovens que poderiam cair, escorregar para o horror. Eu lhe faço uma pergunta: diante do pesadelo inominável cometido pelo norueguês Breivik (Anders Breivik, terrorista que atacou um acampamento de jovens em 22 de julho de 2011, em Oslo), com 72 mortos no espaço de alguns minutos, você diria que o problema é o cristianismo ou o catolicismo? Certamente não.

Qual é a sua opinião sobre teses como as defendidas por intelectuais franceses como Éric Zemmour, que propõe deportação de imigrantes?

São teses e intelectuais absolutamente ultrajantes. Falar de deportação de muçulmanos da França, que foi a questão tratada numa entrevista a um jornal espanhol, é cometer um crime virtual. Lembro que o III Reich, antes de tentar exterminar os judeus, pretendeu deportá-los. Penso que nomes como Zemmour, o escritor Houellebecq (Michel Houellebecq) e Renaud Camus são os batalhões precursores da Frente Nacional (partido francês de extrema-direita). Isso quer dizer que a islamofobia é um instrumento muito importante da direita, na França e também na Europa, para chegar ao poder. Estamos numa situação extremamente inquietante desse ponto de vista, onde você pode encontrar o discurso e a propaganda da extrema-direita do início do século 20 reproduzidos de forma precisa, com a diferença de que agora os muçulmanos ocupam o lugar dos judeus. Isso é muito preocupante.

A França está doente? De quê?


Penso que é necessário compreender a dialética complicada da situação. Os atiradores não são pessoas comuns – são parte de uma ínfima minoria. Mas, ao mesmo tempo, é preciso considerar que há um terreno para esse terrorismo. E a doença da França está relacionada a esse terreno. É a doença da discriminação, do racismo, da islamofobia, do antissemitismo. Há na França uma parte da população que foi lançada na pobreza e na miséria, que vive em guetos, que são as grandes cidades das banlieues (subúrbios). É evidente que há situações de mal-estar econômico e social, mas também moral, que servem ao terror e ao terrorismo. Desse ponto de vista, não se deve negligenciar os fatos que ocorreram no mundo nos últimos 20 anos. O pesquisador francês Gilbert Achcar (historiador e professor da Universidade de Londres) usa o termo “choque de barbarismos”. Isso quer dizer que há uma parte da população que vê a tortura perpetrada em Abu Ghraib e, depois, em Guantánamo pelos americanos e que vê, de outro lado, o Estado Islâmico (EI). Há uma espécie de pingue-pongue entre esses dois tipos de barbárie. Veja o que acontece na Síria, com mais de 200 mil mortos, a maior parte de muçulmanos, com certeza. Essa matança generalizada certamente marcou esses jovens desesperados. E depois se vê, no verão passado, o ataque contra a Faixa de Gaza, com mais de 2 mil mortos, entre eles mais de 500 crianças. Tudo isso contribui para criar esse terror em meio ao qual o terrorismo pode fazer recrutamentos. Há, portanto, a necessidade de tratar essa doença.

Qual seria a possível solução política?

Penso que há, em parte, a resposta da repressão. É importante que se reforce a polícia para perseguir e prender os terroristas que cometeram esses atentados e outros que possam vir a fazê-lo. Hoje (sábado), há uma declaração da Al-Qaeda no Iêmen que reivindica essas ações, felicita os perpetradores e anuncia outras. Então, há, certamente, uma resposta policial a essa situação. Mas a resposta principal, na minha opinião, na França e na Europa, deve ser social, contra a indiferença em relação a grande parte da população, notadamente os jovens. Há também, em escala mundial, uma reflexão a fazer sobre a incapacidade da guerra de resolver os problemas. Tudo indica que, com a guerra, não se ganha nada. A guerra agrava os problemas. Há necessidade de um outro tipo de abordagem dos problemas, no Oriente Médio, certamente, mas também na África. Eu diria que a resposta não poderá ser somente militar, que é preciso ser uma resposta econômica, social e política.







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