LENIO LUIZ STRECK
DEMOCRACIA. Nem a liberdade de religião nem a de expressão deveriam pressupor a permissão para incitar o ódio
Qual é o limite da liberdade de expressão? Em nome dessa liberdade, é possível dizer qualquer coisa? Esta questão esteve na pauta por estes dias, envolvendo discursos de intolerância religiosa que circulam nas redes sociais. Vamos tentar entender o que aconteceu. Em face de uma série de vídeos na internet em que pastores de uma determinada igreja pentecostal promovem discursos de ódio e intolerância contra as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé), o Ministério Público Federal entrou com uma ação judicial para retirar tais vídeos do ar.
O juiz federal do Rio de Janeiro encarregado do caso negou a retirada dos vídeos, sob o argumento, em um primeiro momento, de que as “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem em religião” e que a elas faltariam “traços necessários de uma religião”, como um “texto base”, a exemplo da Bíblia ou do Alcorão. Apontou, ainda, a ausência de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. A pressão social foi grande contra a decisão e o juiz reexaminou a ação, dizendo que, agora, reconhecia que candomblé e umbanda eram religiões. Mas não mandou retirar os vídeos, dizendo que foram feitos ao abrigo da liberdade de expressão.
O juiz errou. E por quê? Porque não importa o que juiz pensa acerca do que seja ou não seja religião. Isso não depende dele. Há milhões de pessoas que acreditam na umbanda e no candomblé. E isso basta. A Constituição reconhece o pluralismo social e cultural e condena o racismo social, cultural e de classe, além de assegurar direitos culturais aos indivíduos e às comunidades ancestrais.
Sim, existe racismo cultural do mesmo modo que existe o “racismo comum”. Como indaga o jurista Marcelo Cattoni: “Faz algum sentido, para efeito de garantir a liberdade religiosa diferenciar manifestações religiosas e religião? Afinal, o que é liberdade religiosa e de crença num Estado Democrático, republicano, laico e protetor do pluralismo social e cultural?”.
O Supremo Tribunal Federal (STF), julgando o caso de Siegfried Ellwanger, que escrevera livros racistas, negou o sentido constitucional da liberdade de expressão a discursos de ódio, a expressões de preconceito e de discriminação de qualquer natureza. O juiz não sabia disso?
Nitidamente os tais vídeos configuram abuso de liberdade de expressão. São discursos de ódio e de intolerância. No mínimo, racismo cultural. Parafraseando Dostoiévski e sem fazer trocadilhos (e invertendo a frase), se Deus morreu, agora não podemos tudo...
A partir de um pretenso liberalismo, o juiz invoca a defesa da liberdade de expressão. Só que errou o alvo. Isto porque tanto a proteção da liberdade de religião e crença, quanto a tutela da liberdade de expressão não implicam indiferença do Estado para com esses campos. Explico melhor: há um erro de base naqueles que pensam que a liberdade de expressão representa uma espécie de direito absoluto em uma democracia: o esquecimento que a liberdade de expressão implica o exercício da tolerância. Como dizia o velho Kant – um baita liberal – a autoridade política, no campo da liberdade de religião, possui um direito negativo de preservar a comunidade política de toda influência que possa ser prejudicial à tranquilidade pública. Nesse passo, o Estado deve, por consequência, diz Kant, não permitir que a concórdia civil fique em perigo, seja pelas disputas internas, seja pelo conflito de diferentes religiões entre si, o que constitui, então, um direito de polícia. Ponto para o velho Imannuel!
Ou seja, diante de discursos que incitam o ódio e a intolerância, não podemos falar em exercício legítimo da liberdade de expressão. Aliás, por ocasião do julgamento do caso Ellwanger, chegou-se a sustentar que “judeu não era raça”, para descaracterizar o crime de racismo... Quer dizer que se “judeu não fosse raça”, os livros de Ellwanger poderiam ter sido publicados (por exemplo, Acabou o Gás)? Se judeu não é raça, o que mudaria? No caso aqui sob comento, o que muda se a umbanda é religião ou não? Quer dizer que, em sendo religião, pode ser vítima de discurso de ódio ou de intolerância ou de racismo cultural? Ou seja: ao que entendi, tanto faz se umbanda e candomblé são religiões, porque, em nome de liberdade de expressão, pode-se delas dizer o que se quiser! Ou entendi mal?
Numa palavra: na democracia tudo pode? Veja-se como, em nome da liberdade, vamos criando permissividades: de repente, sem qualquer aviso, São Paulo é vítima das greves de ônibus. Milhões de pessoas prejudicadas. Viva a liberdade de fazer greve! Viva a liberdade de expressão em poder fazer vídeos recheados de intolerância. Viva! E vamos logo passar a mão no traseiro do guarda! E as consequências desse “Deus morreu e agora pode tudo”? Bem, as consequências sempre vem depois... como dizia o genial Conselheiro Acácio, do romance Primo Basílio.
POR LENIO LUIZ STRECK | PROFESSOR TITULAR DA UNISINOS E PROCURADOR DE JUSTIÇA-RS
Nem a liberdade de religião nem a de expressão deveriam pressupor a permissão para incitar o ódio