Amauri Segalla e Pedro Marcondes de MouraEm 1964, o Brasil era um País enredado numa teia de conspirações. Tramava-se contra o governo de João Goulart, mas o próprio Jango quis corromper as regras da sucessão presidencial. Enquanto a direita urdia a tomada de poder, líderes da esquerda defendiam o fechamento do Congresso Nacional. Se os empresários lançaram uma campanha que incendiou militares, os estudantes da UNE cantaram uma música com o refrão “Não dá pra ter democracia se a barriga está vazia”. Ao mesmo tempo em que Gilberto Freyre celebrou o golpe, Darcy Ribeiro defendeu a resistência até a morte. O Brasil de 1964 era um balaio de ideias e correntes políticas, de líderes pertinazes e sabotadores empedernidos, e por isso mesmo a sociedade ansiava por mudanças, ainda que elas significassem o desapego à democracia. Alguma coisa precisava acontecer, e aconteceu da pior maneira possível. No livro “A Ditadura Envergonhada”, do jornalista Elio Gaspari, consta o que Miguel Arraes, o governador esquerdista de Pernambuco, disse a amigos às vésperas do histórico 1º de abril: “Estou certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei.”
NUVENS SOBRE BRASíLIA
Conspiradores de todas as correntes ideológicas lutavam por ruptura institucional
O golpe veio de lá, mas poderia ter vindo de qualquer lugar. Seu primeiro capítulo se deu na renúncia de Jânio Quadros, em 1961, que desencadeou uma sequência de acontecimentos que acabaram por fragmentar o País. Na ausência de Jânio, a chefia da nação deveria ser transmitida a João Goulart, mas seu nome foi vetado por ministros militares – e assim ele sofreria seu primeiro golpe antes mesmo de assumir o cargo. Inventou-se uma fórmula parlamentarista delirante, segundo a qual Jango ocuparia a Presidência, mas sem desfrutar de fato do poder. O parlamentarismo caiu um ano e meio depois, em um plebiscito que daria a Jango 9,5 milhões de votos. Mas, enfim presidente, o homem que já causava arrepios nos conservadores aproximou-se ainda mais das esquerdas. Em outubro de 1963, pediu ao Congresso a decretação do estado de sítio e, pouco depois, quis alterar a Constituição, o que abriria a possibilidade de ser reeleito no pleito de 1965, suspenso pela ditadura. Seu cunhado, o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, assumiria então o papel de incendiador oficial da República. No Comício da Central, no dia 13 de março, Brizola propôs o fechamento do Congresso. A Jango, disse não uma, mas várias vezes: “Se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”. A ideia golpista estava no ar.
Em janeiro, em uma entrevista na tevê, Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista, fez uma declaração que assustou almas mais suscetíveis: “Poderíamos concordar com a dissolução do Congresso se houvesse um governo que desse as necessárias garantias democráticas a todas as forças patrióticas”. Não eram, a seu modo, conspiradores de plantão?
A guinada de Jango e a proximidade com líderes comunistas exasperaram os sentimentos mais sombrios da direita nacional. Ávidos por derrubar o presidente, alguns dos principais empresários do País criaram o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o Ipês, constituído com o propósito de lançar campanhas difamatórias contra movimentos de esquerda. O Ipês fez propagandas de alcance nacional que apresentavam comunistas como indivíduos sanguinários, e seus quadros contavam com figuras que mais tarde se tornariam símbolos da ditadura, como o general Golbery do Couto e Silva. Num período em que a circulação de informações não se dava de maneira irrestrita como agora, o Ipês produziu um longo documentário sobre a economia do País. A obra carregou na dramaticidade. A situação era feia – inflação perto de 100% ao ano, diminuição da renda per capita, gastos públicos excessivos –, mas o Ipês pintou um cenário de tragédia que levou pânico principalmente à classe média.
No âmbito político, havia golpistas entre os governadores dos principais Estados brasileiros. Em São Paulo, Adhemar de Barros organizou, com a ajuda de lideranças católicas, a Marcha da Família, evento que contou com a presença de centenas de milhares de pessoas contrárias à “onda comunista” – era o apoio popular que os militares precisavam para levar o golpe adiante. Em Minas Gerais, o governador e banqueiro José de Magalhães Pinto fez tudo que pôde para defenestrar Jango. No dia 28 de março, Magalhães reuniu-se com o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar e primeiro militar a pôr suas tropas na rua. A pauta do encontro: as ações que seriam lançadas para tomar a Presidência. Carlos Lacerda, o “derrubador de presidentes”
e governador do então Estado da Guanabara, orgulhava-se de ter instigado o governo americano ao dar uma entrevista bombástica para o jornal “Los Angeles Times”, denunciando o que chamou de infiltração comunista no governo Jango. Não estavam todos conspirando contra o presidente?
Na lógica dos governadores, a queda de Jango resultaria num governo militar transitório até as eleições presidenciais, em 1966, quando disputariam votos na condição de favoritos. Brizola raciocinou da mesma forma. Havia até um slogan para a campanha dele: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”.
Em 64, o Brasil ansiava por mudanças, mesmo se elas ameaçassem a democracia
O golpe veio e a ironia é que muitos de seus protagonistas – de um lado ou de outro da trincheira – acabaram banidos pelos militares. Adhemar fugiu e morreu na França. Lacerda foi preso. Prestes entrou na clandestinidade e depois viveu anos na antiga União Soviética. Brizola exilou-se no Uruguai. Consta que, ao cruzar a fronteira, carregava a faixa presidencial roubada de Jango.
Montagem sobre foto de Dmitri Kessel/Time Life Pictures/Getty Images, fotos: Arquivo em/D.A Press; Uh/Folhapress
Conspiração americana Yan Boechat ([email protected])A noite já havia caído sobre a Guanabara naquela sexta-feira de outono que marcava o fim de uma semana especialmente tensa no país quando o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, iniciou a transmissão de um longo telegrama ao Departamento de Estado Americano. Classificado como “Top Secret”, o documento era dividido em cinco partes e tinha como destinatários figuras do primeiro escalão do governo dos Estados Unidos, como o secretário de Defesa, Robert McNamara, e o secretário de Estado, Dean Rusk. Gordon ainda estava sob o impacto do incendiário discurso do então presidente João Goulart realizado duas semanas antes na Central do Brasil, no Rio, e impressionado com o imenso apoio popular à Marcha da Família com Deus. Ele acreditava na ameaça concreta de uma guerra civil no Brasil. Para ele, Jango estava determinado a dar um golpe e assumir poderes ditatoriais com o apoio de comunistas dispostos a transformar o País em uma espécie de China maoista da América do Sul. “Se eles tiverem sucesso”, escreve Gordon a seus superiores, “é bastante provável que o Brasil fique sob total controle comunista”.
REGISTRO
O presidente John Kennedy e o embaixador americano no Brasil,
Lincoln Gordon, no Salão Oval da Casa Branca
O documento enviado no dia 27 de março de 1964 tinha intenções mais complexas do que o simples relato do estado das coisas no maior país da América Latina. Com a descrição alarmista, Lincoln Gordon pedia, também, autorização para colocar em prática um plano arriscado, porém ambicioso, conhecido como Brother Sam, que tinha como objetivo depor João Goulart da Presidência e entregar o poder a militares fiéis à ideologia americana de luta contra o comunismo. No telegrama enviado da embaixada americana no Rio, Gordon é explícito: “Recomendo que todas as medidas para preparar o envio clandestino de armas de origem não americana aos apoiadores de Castelo Branco em São Paulo sejam feitas o mais rápido possível (...) A entrega deve ocorrer à noite por submarino em uma área isolada ao sul de Santos, provavelmente próximo a Iguape ou ‘Gananeia’ (sic)”.
O pedido para envio de armas para apoiadores do general Castelo Branco era apenas uma, talvez a mais simples e a menor, de uma série de ações que os Estados Unidos pretendiam tomar caso o golpe de 1º de abril não saísse como se esperava. A operação de apoio aos militares golpistas brasileiros começou a ser desenhada dois anos antes com o apoio do presidente americano John F. Kennedy. Em gravações feitas no Salão Oval da Casa Branca em 1962 e 1963, Kennedy fala abertamente com Gordon sobre um golpe no Brasil (leia diálogos na página anterior). No último registro de conversa entre os dois, um mês e meio antes de o presidente americano ser assassinado no Texas, Kennedy pergunta a Gordon: “Você vê a situação caminhando para um ponto em que seria desejável interferir militarmente nós mesmos?”
A morte do mais carismático líder americano do pós-guerra não afetou os planos de intervenção no Brasil. Sob o comando de Lyndon Johnson, Gordon continuou com carta branca para conspirar contra o presidente brasileiro. Ele já vinha fazendo isso desde 1961, quando assumiu a embaixada americana no Brasil. Para apoiá-lo na missão, o Departamento de Estado enviou o coronel Vernon Walters, ainda em 1963, para ser o adido militar americano no Brasil. Walters, um poliglota que falava sete idiomas, havia sido o responsável, quase 20 anos antes, por fazer a interlocução entre os militares brasileiros e os americanos na campanha da FEB na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, tornou-se amigo de Castelo Branco, que comandava o efetivo de 20 mil pracinhas na Europa.
Ao longo de todo o ano que antecedeu a tomada de poder pelos militares, os americanos fizeram de tudo para enfraquecer o governo de João Goulart. Seja por meio de cancelamento de empréstimos via FMI ou Banco Mundial, seja financiando grupos que eram abertamente contra o presidente brasileiro, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipes. Ao mesmo tempo, Gordon e Walters tramavam com os militares brasileiros a melhor maneira de assumir o poder.
Foi no início da tarde do dia 31 de março que o embaixador americano finalmente recebeu uma resposta formal dos pedidos que havia feito quatro dias antes. Por meio de um telegrama enviado diretamente do Departamento de Estado, a Casa Branca informava que havia autorizado o envio de um porta-aviões, seis destróieres, petroleiros abastecidos com 130 mil litros de combustível, além de aviões, helicópteros e tropas para as proximidades da costa do Rio de Janeiro. As 100 toneladas de armas seriam enviadas para Campinas, e não para o litoral, por meio de seis aviões cargueiros. Cerca de 12 horas depois, o general Mourão Filho iniciou a marcha com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro disposto a tomar o poder. O resto é história.
Gordon acreditava – ou queria que seus superiores acreditassem – que haveria uma sangrenta guerra civil no país. Com o poder nas mãos dos militares já no dia 1º de abril, o embaixador informou ao secretário de Estado, Dean Rusk, que a intervenção não seria necessária. Tudo havia corrido melhor do que se esperava. Apenas os paulistas haviam pedido auxílio militar aos Estados Unidos.
Foto: Bettmann/Corbis/Latinstock