Justiça
SEM ATROPELOS
NILSON MELLO é jornalista e advogado. O GLOBO, 11/04/2011 às 19h16mA derrubada da aplicação da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos colocou diante de um conflito. A lei de iniciativa popular, que evidentemente é muito bem-vinda, mexe com o processo eleitoral do país. E a Constituição Federal veda mudanças nas regras das eleições um ano antes do pleito (Artigo 16).
Como a lei foi aprovada em junho do ano passado, não poderia ser aplicada em 2010 - e chega a ser surpreendente que o Tribunal Superior Eleitoral e ministros do STF, seguindo o clamor das ruas, tenham tido entendimento contrário, ainda que reconheçamos que o Direito não seja uma ciência exata e, por isso, esteja sujeito a amplas interpretações.
O Supremo, com o voto do recém-empossado ministro Luiz Fux, pode ter momentaneamente frustrado a vontade de parcela esclarecida da sociedade, que espera a moralização de sua classe política. Mas votar de forma contrária seria passar por cima da Constituição e, em última análise, também agir contrariamente aos interesses da sociedade.
Não se trata de filigrana jurídica, ou de apreço desmedido pelo formalismo. Se o Brasil tem, como sabemos, longo histórico de desordem e de ilegalidade, não é por falta de leis, mas sim porque aqui não se aplica e não se respeita a legislação já existente - independentemente de as normas legais serem boas ou más.
A propósito, seria até melhor que tivéssemos um número menor de leis e normas - e que elas fossem mais razoáveis -, mas que as seguíssemos de forma incondicional. Por exemplo: as exigências legais impostas ao empreendedor brasileiro são uma afronta à produtividade de nossa economia e deveriam ser permanente objeto de revisão e reformulação. (Não é por outra razão que estamos na rabeira do ranking mundial da competitividade, no 58º lugar entre os países).
Convém ressaltar, contudo, que o Artigo 16, impondo o princípio da anterioridade, é um dispositivo importante dentro do sistema, pois blinda o processo eleitoral das ações oportunistas e casuísticas que geralmente beneficiam uns poucos detentores do poder em detrimento da coletividade. Se há conteúdo contraproducente na Constituição - em especial no que diz respeito às relações econômicas - esse certamente não é caso do do dispositivo citado.
Além disso, alterar leis e emendar a Constituição sempre que necessário é algo bem diferente de ignorá-las. E mudanças nas leis cabem ao Legislativo, não ao Judiciário. Sim, nosso Legislativo é de baixo nível, mas é o que podemos ter no momento como correspondência de nosso eleitorado, ainda desqualificado.
Portanto, o voto do ministro Luiz Fux é uma manifestação de coerência, que moraliza o sistema jurídico e as instituições. Contornar a lei para alcançar objetivos que entendemos serem nobres é postura incompatível com o estado de direito em consolidação no Brasil.
Temos um longo caminho à frente. Sem atropelos.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Se o "voto do ministro Luiz Fux é uma manifestação de coerência, que moraliza o sistema jurídico e as instituições" como afirma o autor deste artigo, o que dizer da decisão do TSE e dos votos dos Ministros a favor da aplicação imediata da Lei Ficha pelo interesse da ordem pública e do bem comum? O fato é que o Ministro Fux e outros escolheram na constituição dispositivos que dão salvaguardas ao interesse dos ficha sujas, enquanto que os Ministros a favor da lei escolheram dispositivos de interesse coletivo, da ordem pública e do bem comum. É questão de escolhas baseadas na convicção pessoal de cada Ministro e não de justiça promovida por leis coativas e diligentes com finalidade de retirar da vida política os processados e condenados de cometer imoralidades, improbidades e crimes.
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