Justiça
O PODER DA REAÇÃO POPULAR
O NOVO MUNDO ÁRABE - ZERO HORA, 12/02/2011
A transição para o cenário que ocupará o espaço político deixado pelo fim do regime de Hosni Mubarak no Egito poderá se estender por meses ou anos. O impacto mundial da derrubada do ditador é imediato, e seus significados ultrapassam em muito as fronteiras do país que, em 18 dias de mobilizações, conseguiu o que gerações almejaram por décadas, e não só no Egito. Com a queda de Mubarak, desmorona também uma concepção de Estados de exceção que, por omissão ou conveniência, eram tratados por alguns países aliados como moderados úteis aos interesses do Ocidente e por outros tantos, que só agora se revelam vitoriosos, como regimes opressores.
A rebelião que derrubou o governo egípcio é
a maturação de um longo processo de enfrentamento da pretensa perenidade de regimes mantidos à força pela imposição do poder militar e por questionáveis apoios externos. É significativo que o Egito seja a grande nação árabe a festejar o êxito de uma sequência de manifestações populares iniciada em meados de dezembro na Tunísia. Também é significativo que, em tão pouco tempo, as rebeliões tenham levado tanta gente às praças e sacudido regimes considerados inabaláveis pela capacidade de reinventar os mecanismos que os mantinham, mesmo que precariamente, controlando direitos, expectativas e sonhos de milhões de pessoas.
Há lições que, antes mesmo da ruína de Mubarak e de outros ditadores, a eclosão da insatisfação oferece ao mundo. Durante décadas, sob a inspiração de referências seculares, países árabes – assim como nações de outros continentes – sustentaram governos sob o argumento de que preservavam valores e culturas alheias aos costumes e preceitos da chamada democracia ocidental. Assim governaram, formaram alianças e conduziram confrontos políticos e bélicos, sempre com a desculpa de que defendiam seus territórios, suas crenças, seus interesses e seus cidadãos.
A soberba, os apoios internos e, principalmente, a supressão violenta de todas as manifestações de liberdade os mantiveram como soberanos aparentemente inatacáveis.
A reação popular desafia déspotas e os surpreende em suas fortalezas com as armas do século 21. À tática da monopolização da informação, que sonegava da sociedade o que lhe interessava saber, o levante nas praças respondeu com a intensa disseminação das suas vontades. A vontade, agora irreprimível, é a da mudança, que contagia, como se vê nas manifestações, cidadãos de todas as classes sociais e de todas as idades. Sabe-se que as motivações são múltiplas, a contar das necessidades mais imediatas, que envolvem os apelos por trabalho, renda, dignidade. Até agora, esses regimes conseguiram, com os mais variados subterfúgios, abafar o clamor por melhores condições de vida. No mundo da informação sem controles, em que ninguém, tampouco as ditaduras, é capaz de reprimir as trocas proporcionadas pelas redes sociais, ruíram as mordaças. Evidencia-se ainda mais desde ontem, com o desfecho da pressão pela renúncia de Mubarak, que os egípcios em festa nas ruas desejam bem mais do que o atendimento de suas demandas urgentes.
A demanda maior é pela validação concreta de direitos, como se vê em todo o mundo árabe. Inicia-se agora a etapa, certamente árdua e demorada, que conduzirá à transição para o que pode vir a ser o novo Egito. Mesmo que se amplifiquem as interrogações sobre os destinos do país livre do opressor, a expectativa mundial é pela prevalência de valores universais, que independem de tradições, culturas ou pretextos políticos. A democracia, em sentido amplo, sem referências a modelos particulares, só se manifesta com respeito ao pluralismo e à liberdade de expressão, e essas não são prerrogativas apenas do Estado de direito ocidental.
O novo momento do mundo árabe também convida a uma profunda reflexão sobre o tratamento que alguns países democráticos dedicaram a regimes ditatoriais. A relação indulgente com esses governos, muitas vezes com a convivência quase promíscua de autoridades ocidentais com os ditadores, deve ser sepultada junto com os dirigentes derrubados.
O Egito, com autonomia e, se for o caso, a mediação pacificadora de organismos internacionais, saberá administrar suas diferenças, reordenar institucionalmente suas expressões políticas e ouvir o que seus cidadãos têm a dizer. Ao resto do mundo, cabe acompanhar o que os egípcios decidirão sobre o seu destino, com a certeza de que o povo mobilizado nas praças e ruas do Cairo e de outras cidades contribuiu para mais uma vitória das conquistas da civilização.
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