O NOVO E O VELHO
Justiça

O NOVO E O VELHO


ZERO HORA 13 de outubro de 2013 | N° 17582

ARTIGOS

Carlos Ayres Britto*


Não procede a afirmação de que a Vida se repete, a história se repete, as coisas se repetem. É impossível tal repetição! A Vida sempre cheira a talco, porque nunca deixa de ser ela mesma: um ser que se parteja a cada instante. Cair nos braços do novo é sua lei, seu destino e sua glória, simplesmente porque ela nunca deixa de ser o que é: original. E como pode o ente original plagiar o que quer que seja, inclusive a si mesmo? Pisar nas pegadas dos outros, ou nas suas próprias pegadas? Ou se é original, ou original se é, porque não há outro modo elementar de ser. O que pode ocorrer é o ser original a se comportar como se original não fosse. Forçar a sua natureza para não funcionar de acordo com ela. Que não é o caso da Vida, que somente sabe fluir ou então espocar por um modo contrário a tudo que cheire a mofo, molde, figurino, xerox, papel carbono, clone, em suma.

Sem tirar nem pôr: que é a Vida senão uma sucessão ininterrupta de instantes? E que é o instante, cada instante, senão uma imensidão de possibilidades? “Ondas de possiblidades”, para lembrar o físico quântico Werner Heisenberg a falar sobre o que se passa no incomensurável mundo da matéria subatômica? Uma onda de possibilidades atrás da outra e nenhuma igual à anterior nem à subsequente? A Vida a surfar na crista de cada qual dessas ondas, porquanto surfista e onda ao mesmo tempo? “O cabelo solto ao vento” (Caetano Veloso), as pernas andarilhas, o peito aberto, o olho a vagar sobre as coisas, contemplativamente, ignorando por completo essa tal de zona de conforto intelectual ou cognitivo? A Vida ora evoluindo de uma forma para outra, ora saltando do próprio nada para o tudo em que o virginalmente novo consiste? Fenômeno mais radical ainda, porque descontínuo ou a eclodir fora do tempo e do espaço?

É isso o que podemos ser, pois o nosso princípio ativo é também a mudança (“tudo muda, menos a mudança”, já dizia o genial filósofo grego Heráclito, que passou por este planeta azul entre os anos de 540 e 480 a.C.). Mais que isso, a nossa mais nutritiva seiva é transitar da mudança para a própria transfiguração. Do mármore bruto para a Pietá de Michelangelo. De partícula sólida para onda vibracional. Criatura e parte da vida que somos. Mas criatura que pode se tornar criadora da sua criadora. Parte que pode se tornar um todo em si, sem deixar de ser parte mesma. Microcosmo de mãos dadas com o macrocosmo, amando-se e respeitando-se por todos os dias da vida dos dois, que são vidas já prometidas à eternidade da Vida maior que os unifica.

Pois bem, o caminho para permanecermos originais, e portanto criativos todo o tempo, principia pelo coração. Coração neurônio, claro, e não simplesmente músculo cardíaco a bater do lado esquerdo do peito, pendularmente. Coração-sentimento. Coração-afeto. Coração-amor. “O olhar amoroso sobre as coisas descobre em cada uma delas um sentido que coincide com o sentido todo da Vida”, fala a poeta mineira Adélia Prado. Esse coração-sentimento, ali postado no hemisfério direito do cérebro, como a fonte de toda intuição. A raiz de toda apropriação instantânea da natureza das coisas (percepção, mais que reflexão). A chave de ignição de toda coragem para ver o novo de olhos nos olhos e a ele se entregar sem pé-atrás. A matriz de toda imaginação, enfim, que põe asas tão turbinadas no coração humano, que os dois juntos passam a fazer coisas que Deus assina embaixo como da autoria Dele!

É isso mesmo! A primazia é da nossa porção-sentimento, porque ela é que abre os poros da nossa porção-pensamento. Não o contrário. E da otimização operacional dos dois, pensamento e sentimento, numa espécie de casamento por amor, é que se pode partejar o rebento da consciência. Aí já se tem o perfazimento da tríade que mais distingue a pessoa humana dos outros animais: sentimento, pensamento e consciência, num grau de refinamento que nos torna vizinhos de porta da mais alta espiritualidade. Tríade que nos dota de uma personalidade do tipo biográfico, inatingível pelos outros espécimes biológicos. Justamente o tipo de personalidade que nos habilita a criar e incessantemente atualizar o mundo da cultura, já significante de toda dimensão nova que o homem acrescenta à natureza.

Aproximo-me do fim desta comunicação escrita. E o faço para insistir na primazia do sentimento, porque ele é o que mais nos descondiciona mentalmente. Logo, o que mais nos salva das nossas pré-compreensões, tantas vezes de costas para a essência das coisas (“o contrário da verdade não é a mentira, mas as nossas convicções”, ajuizou Nietzsche). Nessa medida, ele, sentimento, é o que mais nos predispõe para ver as coisas já despossuídos de memória. Já desacumulados de ego, de sorte a criar em nossa interioridade os espaços vagos de que o Universo precisa para nos preencher de insights, revelações, inspirações. Insights, numa perspectiva científica. Revelações, numa perspectiva mística. Inspirações, numa perspectiva artística. Todos e cada um a projetar em nós uma visão holística das coisas e de nós mesmos. Visão holística ou esférica ou quântica ou unitária da Vida, pois assim é que ela é e se deseja vista e experimentada.

Por último, acredito que não é fechando os espaços para o velho que vamos nos abrir para o novo, porque assim o velho continua a ser a referência primeira do nosso estar-na-Vida. E claro que vai resistir barbaridade para não entregar os pontos. É nos abrindo para o novo que fechamos os espaços para o velho, pois assim postado no grid de largada da nossa predisposição para ser o ser original que somos é que o novo vai se sentir tão em casa “como quem vai, manhãzinha, colher frutas no quintal” (Milton Nascimento e Fernando Brant).


*POETA E MINISTRO APOSENTADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL



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