Justiça
BANALIZAÇÃO DO MAL
ZERO HORA 04 de outubro de 2013 | N° 17573
ARTIGOS
Renato Silvano Pulz*
Os dois andavam cabisbaixos lado a lado. Os olhares tristes e as marcas nos corpos denunciavam a vida de sacrifícios e os trabalhos forçados. Dividiam a rotina e o peso da carga. O relho batendo nas costas só fazia lembrá-los quem mandava. Quando ela viu, aqueles dois bois presos um ao outro por uma canga, não conteve as lágrimas. Era muito triste perceber que esse tipo de sofrimento ainda existia.
Já testemunhamos essas cenas em um triste período em que se acreditava na superioridade entre os homens devido à raça. Felizmente, o racismo é repudiado pelas sociedades contemporâneas. Porém, aceitamos quando a espécie é outra, o que é chamado de especismo. Um fenômeno que explica acharmos normal a exploração animal, mas que provoca tamanha tristeza a um olhar sensível. Talvez aqui o distinto leitor possa pensar que é exagero ou excentricidade alguém chorar ao ver algo tão comum em nossa tradição. É, pois, esse o ponto que pretendo discutir.
Em cartaz no cinema, o filme Hannah Arendt retrata um pouco da vida da filósofa que explorou o tema da violência nas sociedades. Ela estudou, em particular, os regimes totalitários e o nazismo, pois forneceram fartas evidências de como o homem pode tratar os seus semelhantes. A pensadora, ao perceber que pessoas comuns, como eu e você, participavam ou deixavam acontecer atos cruéis e bárbaros, escreveu sobre a banalização do mal e creditou esse fenômeno à incapacidade de alguns de refletir e pensar sobre os fatos.
Então, em pleno século 21, nos flagramos embotados pela violência do cotidiano, num tempo em que aquele que chora ao ver o sofrimento do outro é a exceção. Se ainda existe o trabalho infantil, o estupro, o tráfico e outras tantas formas de violência, é porque de alguma maneira torta convivemos com elas apesar de condená-las. Mas, acima de tudo, um tipo de violência acontece a todo instante sem nos incomodar ou causar desconforto moral. É aquela sofrida pelos animais que nos servem.
Os animais ditos de produção vivem uma vida miserável, confinados a espaços reduzidos e superlotados, sofrendo de doenças provocadas pelas elevadas taxas de crescimento e ganho de peso. Qualquer semelhança com o que já fizemos a nossa própria espécie não é mera coincidência. Para concluir, lembro que a lógica da exploração dos seres vulneráveis é a mesma, sejam humanos ou não. Assim, como afirmou Gandhi, o progresso moral de uma nação pode ser julgado pela forma como os animais são tratados.
*PROFESSOR DE BEM-ESTAR ANIMAL, MÉDICO VETERINÁRIO E BACHAREL EM DIREITO
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Ao terminar de ler este artigo e refletir a conclusão dele, imediatamente o pensamento me levou para dentro dos presídios e dos hospitais onde seres humanos são "confinados a espaços reduzidos e superlotados, sofrendo de doenças provocadas não "pelas elevadas taxas de crescimento e ganho de peso" dos animais, mas pela violência a que, impunemente, são submetidos pelo Estado sem que haja justiça capaz de coibir, punir e exigir responsabilidades sob as penas da lei.
A foto que ilustra este artigo (inserido por nossa conta) é do curta “A Canga” (2001), dirigido por Marcus Vilar, cuja história se passa no meio de uma lavoura seca, onde um velho agricultor obriga os filhos a colocar, nos ombros, uma canga de boi. A esposa e a nora também são forçadas a ajudar no trabalho.
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