Justiça
NOVOS SERVOS
ZERO HORA 11 de novembro de 2012 | N° 17250. ARTIGOS
Flávio Tavares*A frase de Tristão de Athayde – “o passado não é aquilo que passa, mas o que fica do que passou” – serve de guia, agora, com o fim da circulação do Jornal da Tarde, em São Paulo. O fato extrapola a imprensa ou o jornalismo e vai além do costumeiro fechamento de empresa deficitária. Mais do que tudo, é um alerta para entender as artimanhas da sociedade do futuro, em que a velocidade da eletrônica modifica (ou deforma) a percepção do que seja a vida.
Filho dileto do tradicional O Estado de S. Paulo, o JT foi também seu filho pródigo. Sempre deficitário na contabilidade empresarial, o halo de desbravar coisas novas aumentava, porém, o prestígio do jornal-pai, que compensava as perdas financeiras. Nos tempos da ditadura direitista, as informações cortadas pelos censores eram substituídas por receitas de cozinha, página por página, em sucessivo humor, mostrando que ali deviam estar notícias e não culinária. O “Estadão”, mais austero, substituía o proibido pelos cantos de Os Lusíadas, negando-se a preencher os espaços e a fingir que não havia tirano nem censores.
Trabalhei nos dois jornais, no Exterior e no Brasil (na ditadura assinava com o cognome de Júlio Delgado), mas não quero falar da inovadora história da publicação que desapareceu e, sim, ir às profundezas do desaparecimento.
O derradeiro editorial do JT (que o “Estadão” paternalmente transcreveu) aponta para o detalhe essencial, que vai além da imprensa: “...o pensamento escrito se debate numa crise que é, essencialmente, uma crise universal de desajuste de velocidades”. Dias atrás, o jurista Paulo Brossard (que, antes de passar pelos três poderes da República, foi correspondente do “Estadão” em nosso Estado) já o citou e eu o repriso para me deter no fundamental – “a crise universal do desajuste de velocidades”.
Não se banalize a ideia pensando em corrida de Fórmula-1... A era eletrônica cria um perigoso desajuste na visão do que seja tempo, nos leva à superficialidade da rapidez e nos afasta da realidade profunda. Em viagem, ao ver algo novo, já não nos detemos no significado dos detalhes. Vamos direto à foto e (com o celular) captamos a primeira imagem à vista, para vê-la reproduzida de imediato na telinha. Nos interessamos por saber, no minuto seguinte, o que a câmera captou segundos antes, sem buscar entender o que a observação crítica podia descobrir por si.
A rapidez da eletrônica virou fetiche irresistível e a imagem suplanta o raciocínio. As crianças já não criam brincando com caixinhas, mas – passivas – seus bonecos falantes mexem olhos e pernas, movidos por pilhas com mercúrio. Os jovens, com pressa, aprendem “só o que cai no vestibular”, e só para isto. Tudo é apressado ou descartável – o amor, os conhecidos, a esferográfica e a escova dental que jogamos ao lixo.
Na informação, a imagem suplanta a descrição crítica. Com som estridente e violência direta ou encoberta, os programas de vulgaridade enchem espaços na TV, onde pseudopastores de pseudoigrejas pregam o medo medieval com a rapidez da eletrônica e, na hora, ajeitam com dinheiro todo pecado ou erro.
O derradeiro editorial do JT foi ao fundo do tema: “A submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo devolve a humanidade a uma crescente incapacidade de pensar e vai reduzindo a vida a uma sucessão de reações automatizadas de sobrevivência, onde somos nós que, em bando, servimos às máquinas e não elas que nos acrescentam à individualidade, à segurança e ao conforto material ou espiritual”.
Por fim, ao desaparecer, o JT nos convocou a “superar a barbárie e dar a cada um as rédeas do próprio destino, objetivo da democracia”, para superar a nova servidão.
*Jornalista e escritor
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