ZERO HORA 07 de dezembro de 2014 | N° 18006
Por que o Estado Islâmico apavora o planeta. Selvagem no combate, brutal com prisioneiros e hábil em mídia, grupo fundado em 2002 espalha seus tentáculos pelo Oriente Médio
“E o seu Deus disse aos anjos, ‘Eu criarei um califado sobre a Terra’.”Um versículo do Corão, livro sagrado do Islã, serviu de justificativa para uma proclamação solene feita no final de junho no norte do Iraque e endereçado aos muçulmanos do mundo inteiro. Em árabe, califado significa “sucessão” e serve para nomear a autoridade divina transmitida a Maomé e aos que assumiram o comando dos fiéis após a morte do Profeta. Essa foi a base para o anúncio da criação de um Estado paralelo na faixa esparsa de território que vai do norte da Síria ao oeste iraquiano. Nesse naco de terra estabeleceu-se o primeiro califado de que se tem notícia em 90 anos. O lugar de califa é ocupado por um iraquiano nascido em 1971 e conhecido como Abubakr al-Baghdadi, que assumiu o nome de Ibrahim (Abraão).
Mas não foi a inspiração religiosa que catapultou o Estado Islâmico da obscuridade ao topo do noticiário global, e sim a brutalidade capaz de chocar até mesmo organizações terroristas como a Al-Qaeda. Com uma mescla de poderio militar, ânsia pela morte em combate, selvageria contra prisioneiros e civis e perícia no uso da propaganda e da internet, o grupo fundado há pouco mais de uma década na Jordânia horroriza o mundo.
Uma síntese das habilidades e das aberrações exibidas pelo EI pode ser observada de uma colina na cidade de Suruç, junto à fronteira sírio-turca. Numa manhã de novembro, a reportagem de ZH divisa o casario da cidade de Kobani, transformada em um amontoado de ruínas por uma batalha desvairada de quase três meses entre o EI, de um lado, e uma frente mal costurada de grupos rebeldes sírios e organizações curdas que, algumas semanas antes da chegada dos jihadistas, estavam lutando entre si. Não são necessários mais de alguns minutos para se assistir à subida da coluna de fumaça que se segue a uma explosão no oeste da cidade, ainda nas mãos do EI. Acima das nuvens, rugem jatos da coalizão liderada pelos Estados Unidos, mas é impossível saber se o fogo veio do ar ou de terra.
– Antes da chegada do Exército Livre da Síria (ELS), metade da cidade estava sob controle do EI. Agora, o ELS e as Unidades de Proteção Popular (UPP, exército do Curdistão sírio) controlam 70% – diz a ZH Abdullah Dada, vice-comandante das UPP em Kobani.
Praticamente a totalidade dos habitantes de Kobani, de etnia curda, preferiu exilar-se na Turquia a se render ao EI (leia mais na página 11). Se não foi vitorioso, porém, o grupo mostrou capacidade de sustentar suas linhas mesmo sob bombardeio da força aérea mais poderosa do mundo, a dos Estados Unidos. Assim, não é de admirar que, em menos de um mês, o EI tenha lançado uma ofensiva tremenda no norte do Iraque, colocando em fuga pelo menos duas divisões do exército iraquiano equipadas e treinadas pelos mesmos americanos. No auge desse avanço, a menos de 30 quilômetros de Bagdá, o EI tomou a decisão de proclamar o califado.
O assombro atingiu o ápice em agosto, quando um vídeo da execução a sangue-frio de um refém, o repórter americano James Foley, tornou-se imagem icônica da guerra civil na Síria. Não era a primeira vez que o EI massacrava civis: nas cidades sob seu controle, há meses vinham sendo praticados apedrejamentos, amputações e crucificações. Depois de Foley, o EI executaria outros quatro reféns ocidentais e dezenas de militares sírios em frente às câmeras. Particularmente arrepiante, no primeiro episódio, foi o fato de a degola ter sido precedida por um discurso do carrasco, com a face oculta por um lenço negro. Era uma evidente resposta à intervenção americana, que logo se estenderia à Síria:
– Qualquer tentativa sua, Obama (Barack Obama, presidente dos Estados Unidos), de negar aos muçulmanos os direitos de viver em segurança sob o califado islâmico resultará em derramamento de sangue de seu povo.
Pelo sotaque, o algoz foi identificado como procedente do sul de Londres. Em Raqqa, onde teria ocorrido a execução, ganhou o apelido, por prisioneiros, de “John” – outro jihadista britânico seria “Paul”. A presença de John (rebatizado como Jihadi John pela imprensa europeia) e Paul em Raqqa indica que o EI havia se tornado um ímã para combatentes de todos os quadrantes – em suas fileiras, segundo fontes americanas, é possível encontrar cidadãos de 80 países, incluindo um belga filho de brasileira, Brian, rebatizado de Abu Qassem al-Brazili. Na Turquia, o exilado Muhammad Subhi relembra, com uma risada, a impressão que teve ao ver seu vilarejo, na província de Raqqa, ocupado pelo EI:
– Havia uns 500 chechenos andando de um lado para outro e perguntando: “Onde estão os apóstatas (muçulmanos que romperam com os mandamentos da religião)?”. Era a única frase que sabiam articular em árabe. Para eles, não importava se havia fiéis ou cristãos na cidade, apenas se interessavam pelos apóstatas. Pareciam ter caído do céu.
Foi a massiva presença estrangeira, incluindo mais de mil europeus e uma centena de americanos, que afez aumentar o temor de autoridades da Europa e dos EUA em relação a atentados perpetrados em seu solo por operadores da organização.
– O EI é uma ameaça direta e significativa a nós, e aos civis iraquianos e sírios, na região e potencialmente aqui nos EUA – disse em setembro o então diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, Matthew Olsen.
Antes das degolas, o EI não era desconhecido da inteligência ocidental. Como ocorreu com outras organizações jihadistas, o bando de Al-Baghdadi nasceu no seio de um dos mais sólidos aliados dos EUA e da Grã-Bretanha no Oriente Médio: a Jordânia. O grupo, denominado Monoteísmo e Jihad, assassinou em outubro de 2002 o americano Laurence Foley, enviado da agência americana para o desenvolvimento ao país. Um ano depois, com a invasão do Iraque, o fundador da organização, Abu Musab al-Zarqawi, anunciou a escolha do Iraque como palco privilegiado de ação, ao mesmo tempo que declarava adesão à Al-Qaeda.
Por seis anos, a recém-criada Al-Qaeda no Iraque aterrorizou americanos e xiitas iraquianos. Em junho de 2006, Al-Zarqawi foi morto num bombardeio. Quatro meses depois, com o egípcio Abu Ayub al-Masri à frente, o grupo transfigurou-se em Estado Islâmico no Iraque (Eii). Abubakr al-Baghdadi assumiu a liderança do Eii em maio de 2010, após a morte de Al-Masri.
Embora o Eii não tenha disparado um único tiro no primeiro ano da revolta contra a ditadura de Bashar al-Assad, em 2011, a Síria acabou oferecendo aos jihadistas a melhor oportunidade entre todos os países sacudidos pela Primavera Árabe. Comandado pela minoria alauíta, ramo marginal do Islã xiita ao qual pertence a família de al-Assad, o regime sírio firmou-se entre os anos 1970 e 1980 por meio de uma guerra civil contra um levante da maioria sunita. Entre 5 mil e 15 mil civis teriam morrido apenas no bombardeio aéreo da cidade de Hama, em fevereiro de 1982. À alienação dos sunitas e à corrupção do regime, somaram-se os efeitos da crise econômica de 2008, que afetou toda a região, e da guerra civil.
– A destruição da economia pelo conflito na Síria resulta num estado de guerra no qual as pessoas se agarrarão a qualquer entidade que possa lhes propiciar sobrevivência – afirma Raymond Hinnebusch, professor da universidade de Saint Andrews (Escócia) e autor de seis livros sobre a Síria.
Em desvantagem no Iraque, o EI joga sua sorte na Síria. Nessa luta desesperada, o grupo e o país podem perecer, levando de roldão milhares de civis inocentes pegos de surpresa na esquina do terror.
LENTES BRASILEIRAS
A guerra síria por lentes brasileiras
Nascida em Rio Grande, Alice Martins fotografa desde 2012 a tragédia no Oriente MédioPoucos repórteres testemunham guerras desde o começo. Mais raros ainda são os que deixam todo o resto de lado para cobri-las até o final. A brasileira Alice Martins pertence ao segundo time.
Natural de Rio Grande, ela é uma das poucas mulheres acostumadas a ingressar, desde 2012, em território sírio para registrar cenas de uma das mais cruentas tragédias nacionais da história. Mais do que uma obrigação profissional, cobrir a guerra na Síria tornou-se, para Alice, um imperativo de vida.
– Sinto que é uma história muito importante, e há poucos jornalistas. Quanto menos interesse percebo, maior é minha vontade de contá-la – disse a fotógrafa a Zero Hora em junho do ano passado.
As imagens de Alice que compõem as páginas desta reportagem são uma síntese de seu trabalho. Nelas, plasma-se o drama dos homens e mulheres que manejam as armas da guerra, mas, especialmente, daqueles que sofrem seus efeitos. Vidas desenraizadas pela fúria da história, e que ao chão retornam despojadas de tudo que as tornou singulares: sonhos, dúvidas, planos, amores.
Nas lentes de Alice, o pesadelo da guerra atravessa a fronteira do puro desespero e ganha feição de monumento a suas vítimas.
Em Aleppo e Hasaka, na Síria, ou em meio à poeira dos campos de refugiados e cemitérios turcos, a brasileira transformou o espanto em seu elemento natural. A brutalidade não empenou sua capacidade de se indignar. Como fez em agosto do ano passado, ao protestar em público contra o sequestro do jornalista americano James Foley, amigo e colega a quem conheceu na Turquia. Um ano depois, Foley foi degolado em Raqqa, na Síria.
Alice está decidida a cobrir a guerra na Síria até o último dia. E mal pode esperar pela chegada desse dia.
ReportagemLuiz Antônio Araujo, Enviado especial à Turquia
EdiçãoTiciano Osório
FotosAlice Martins (Especial)
DesignRafael Ocaña
[email protected]
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