Justiça
FAZ DE CONTA QUE RESOLVE
O Estado de S.Paulo 10 de janeiro de 2013 | 2h 06
CÍCERO ALVES, DA COSTA, ADVOGADOComo ferramenta para minimizar conflitos de terras que compreendem índios, proprietários rurais e quilombolas, grande expectativa recaiu sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000. Essa PEC autoatribui ao Congresso Nacional o poder de aprovar, desaprovar ou ratificar demarcação de propriedade ou posse de terceiros consideradas indígenas ou quilombolas pela ocupação tradicional que os próprios agentes públicos - Fundação Nacional do Índio (Funai), ministro de Estado da Justiça e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - declaram.
Explicando melhor: entrando em vigor a PEC 215/2000, é o Legislativo federal que julgará se é procedente ou não a terra indígena ou quilombola criada a partir da ocupação tradicional declarada ou assim considerada pelos próprios agentes públicos. Nesse ponto, a motivação da proposta expõe que se trata de um equívoco sem precedentes a pretensão do Congresso Nacional.
Deveras, a condição de "juiz" por autoatribuição do próprio Congresso desvaloriza, desqualifica, ou seja, relativiza ainda mais os princípios do direito de propriedade, da inafastabilidade da prestação jurisdicional, do devido processo legal, da ampla defesa e da segurança jurídica, que são direitos pétreos na Carta Política. Na verdade, no tocante à demarcação indígena ou quilombola, nenhuma eficácia ou efeito prático produz a condição de "juiz" do Legislativo federal.
Ora, desde quando a Funai, o ministro de Estado da Justiça e o Incra podem considerar indígena ou quilombola a propriedade ou posse de terceiros, pela ocupação tradicional que eles próprios declaram? Onde está previsto no ordenamento jurídico regente que o Poder Executivo do País está dotado de legitimidade e de poder para transformar a propriedade ou a posse de terceiros em terras indígenas ou quilombolas pela mera declaração unilateral ou consideração que ele próprio proclama? Que lei é essa que dá esse superpoder ao Executivo brasileiro?
Não obstante a ausência de previsão legal para tal desiderato, na demarcação se faz necessário respeitar o pressuposto essencial que é identificado pela disposição de vontade do "proprietário". Em outras palavras, não há demarcação desacompanhada da vontade do proprietário do objeto demarcando!
Por isso a demarcação constitui direito exclusivo do proprietário, consoante preconiza o ordenamento processual civil. Também por isso a demarcação produz mero efeito declaratório, uma vez que sua finalidade visa a fixar limites ou aviventar os marcos já apagados. E por isso a demarcação não se presta para legitimar domínio.
Alguém se atreve a lançar dúvida sobre essas conclusões?
Acontece, porém, que a demarcação indígena ou quilombola é utilizada para legitimar domínio da União federal ou de comunidade quilombola.
Conclui-se, então, que a demarcação indígena ou quilombola, quando dirigida contra a propriedade ou a posse de terceiros, constitui ferramenta nula de pleno direito. E, em decorrência, a Funai e o Incra não podem demarcar a propriedade ou a posse de terceiros, em nenhuma hipótese.
Nessas circunstâncias, fica evidente a ilegalidade e a imoralidade da ocupação tradicional indígena ou quilombola que os agentes públicos declaram sobre a propriedade ou a posse de terceiros. Fica evidente, portanto, que a Proposta de Emenda Constitucional 215/2000 é absolutamente ineficaz e equivocada para o fim pretendido.
Analisando, contudo, a legitimidade da demarcação por outro ângulo, ter-se-á: considerando que as terras indígenas são bens da União, considerando que as terras quilombolas são devolutas e considerando ainda que a demarcação constitui direito exclusivo do proprietário, fácil se torna concluir que quem demarca essas terras é o Poder Executivo, que delas é o proprietário.
Nesse ponto, então, o Congresso Nacional não pode julgar demarcação indígena ou quilombola, porque o interesse e a legitimidade não lhe dizem respeito.
Portanto, seja pela ilegalidade e imoralidade da demarcação indígena ou quilombola contra a propriedade e a posse de terceiros, seja pelo impedimento de o Legislativo federal se imiscuir nos atos do Poder Executivo, fica evidente que a proposta de emenda constitucional "é só para inglês ver".
Mas o que fazer para resolver o problema?
Considerando que o Direito e as garantias constitucionais não merecem o respeito devido por parte dos agentes públicos, o Congresso Nacional deve legislar uma norma que os impeça de instruírem processo administrativo para demarcar a propriedade ou a posse de terceiros; que os impeça de declararem a ocupação tradicional indígena ou quilombola na propriedade e posse de terceiros, especialmente se a dita ocupação for declarada pela habitação ancestral, pretérita; que os impeça de serem os autores e os próprios juízes do processo demarcatório; que os impeça de usarem a demarcação como ferramenta que legitima o domínio da União ou de comunidade escrava sobre a propriedade ou a posse de terceiros.
Nesse ponto, o bom senso ensina que a norma tem de deixar explícito que a ocupação tradicional, indígena ou quilombola, na propriedade ou posse de terceiros, se for declarada por agentes públicos, e com base em habitação ancestral, pretérita, visando a legitimar domínio, essa "ocupação tradicional" é viciada por desvio de finalidade, cujo efeito ofende o direito de propriedade, o devido processo legal, a inafastabilidade da prestação jurisdicional, a ampla defesa e a segurança jurídica, sendo responsabilizado por improbidade aquele que tenha exarado a famigerada declaração.
Daí, sim, o Congresso Nacional terá dado grande reforço à segurança jurídica e o problema "demarcação" será mesmo resolvido de fato e de direito.
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