Justiça
DESCASO - PROJETO DO COLEGIADO TRAMITA A PASSOS LENTOS DESDE 2005
Crime. Juízes em perigo: projeto de lei que cria colegiados para julgar quadrilhas tramita a passos lentos desde 2005. Processos da juíza assassinada serão assumidos por três magistrados, para evitar exposição pessoal. Ajufe tenta instituir regra para casos em que há risco - Cecília Ritto, do Rio de Janeiro - VEJA ONLINE, 13/08/2011 - 09:36
Intimidar juízes, promotores e autoridades policiais é um item do repertório de organizações criminosas do mundo todo. O assassinato da juíza Patrícia Acioli, em Niterói, na noite de quinta-feira, cria no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, uma bifurcação no caminho para essas instituições: o atentado lançará sobre as pessoas em posições de destaque no combate ao crime uma sombra de medo constante ou servirá como ponto de inflexão na resposta do estado aos bandidos?
Até o momento, o ataque a juízes não era uma praxe. Mas as ameaças sempre ocorreram. Patrícia, conhecida justamente por suas sentenças duras contra policiais e agentes de segurança envolvidos com o crime, foi o alvo de várias delas. A magistrada, em sua cadeira na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, encarnava o exemplo perfeito de autoridade sujeita a esse tipo de investida do banditismo. Atuava em uma região violenta do estado, num momento em que o surgimento das milícias elevou em muitos graus a temperatura do embate entre instituições e quadrilhas.
Patrícia julgou – e condenou – milicianos, traficantes, quadrilhas de transporte alternativo, policiais acusados de integrar grupos de extermínio. Desses, os agentes de segurança são, para uma autoridade, os mais ameaçadores, pois têm, além do fácil acesso às armas, possibilidade de chegar a informações privilegiadas. A proliferação da corrupção policial e da contaminação das polícias civil e militar era justamente o maior alvo da juíza – e dificilmente o desfecho do caso conduzirá a mentores e executores sem algum tipo de ligação com esses servidores.
Ao longo da sexta-feira, a grande preocupação do Judiciário no Rio de Janeiro foi o de deixar claro que a ausência de um serviço de escolta, em 2007, ocorreu por decisão de Patrícia. Essa interrupção na segurança pessoal se deu, na verdade, em dois movimentos. A partir de 2002, Patrícia, por receber ameaças, passou a andar com três policiais militares em sua escolta. Em 2007, uma reavaliação da situação, pelo Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), concluiu que ela poderia andar com apenas um agente. Patrícia teria, então, optado por ficar sem guarda-costas – e não se tem informação, por enquanto, se isso foi por achar que estava totalmente segura ou se considerou que com apenas um homem estaria totalmente insegura.
Os familiares da juíza contestam esse dado, e afirmam que ela rotineiramente oficiava o Tribunal de Justiça a respeito de novas ameaças. O ex-marido de Patrícia, no velório, lançou um desafio. “Durante anos ela recebeu várias ameaças, que eram encaminhadas a ela pelo Disque-Denúncia. Ela expedia ofício ao Tribunal de Justiça, informando tudo o que acontecia e cobrando as providências cabíveis. Eu desconheço o fato de ela ter dispensado segurança. Existem esses ofícios, com ela cobrando as responsabilidades do Tribunal. Se ela tiver de fato dispensado a segurança, é óbvio que há algum documento no TJ com tal informação”, afirmou Júnior – ele pede para não ser citado com seu nome completo.
O fato a ser analisado em primeiro plano, no momento, é: havia, numa das regiões mais violentas do estado do Rio, uma juíza que julgava casos de homicídios e grupos de extermínio sem proteção. E novas ameaças vinham sendo feitas, pelo que relatam pessoas próximas a Patrícia Acioli.
O reconhecimento indiscutível de que a magistrada atuava sob risco está na forma encontrada pelo TJ do Rio de dar continuidade aos processos conduzidos na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo. Uma das medidas estudadas é a de entregar a três magistrados o trabalho que até então apenas a juíza conduzia, evitando, assim, uma exposição pessoal da figura do magistrado. Infelizmente, até então, só havia um juiz exposto, que acabou morto com 21 tiros na noite de quinta-feira.
Recorrer a dispositivos semelhantes – dissolvendo o peso da decisão – é possível no Brasil. Mas não é uma prática instituída nem prevista nas regras internas do Judiciário. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) tenta, sem sucesso, desde 2005 regulamentar uma lei para a institucionalização de um órgão colegiado com três redes. O objetivo é fazer com que os casos envolvendo criminosos de alta periculosidade sejam julgados por três juízes.
O Projeto de Lei número 3 de 2010 propõe: “Estabelece que o juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual, em decisão fundamentada, com a indicação dos motivos e circunstâncias que acarretam riscos à sua integridade física”. Há seis anos, a Ajufe apresentou esse projeto para a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. A Casa aprovou o PL, mas a tramitação no Senado anda a passos lentíssimos.
O texto também prevê a criação de uma polícia judiciária composta basicamente pelos agentes de segurança presentes em todas as varas federais. Eles suprem a falta de policiais federais nas escoltas de magistrados ameaçados. “Não há efetivo suficiente da PF para assegurar a segurança dos juízes. Muito menos da polícia estadual. A maior prova disso é o assassinato desta sexta”, diz o presidente da Ajufe, Gabriel Wedy.
Um dos graves problemas da escolta feita pelos agentes concursados do Judiciário está no fato de eles não terem poder de polícia nem porte de arma. Os que possuem esse porte têm que pagar por ele do próprio bolso. Para piorar, esses agentes sequer recebem treinamento específico para o serviço, com exceção do sul do país, que recebeu ajuda pontual da polícia de Israel.
Como mostrou reportagem de VEJA na edição de 9 de março deste ano, na reportagem Reféns do Crime – juízes ameaçados pelo crime organizado –, o Brasil tem 2.000 juízes federais, e 500 deles atuam na esfera criminal. Nos tribunais afastados dos grandes centros a situação é mais grave.
“Uma colega nossa de Ponta Porã foi ameaçada. Eu estive com o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e ele garantiu proteção. Porém, não havia policiais federais para isso. Acabamos adotando uma solução caseira e colocamos nossos agentes de segurança”, afirma Gabriel Wedy.
Tirar o caráter pessoal das decisões contra grupos de extermínio e as organizações criminosas foi a solução, por exemplo, para aumentar a segurança dos magistrados italianos que ajudaram a reduzir a influência das máfias italianas.
Num país com problemas nas fronteiras e necessidade de contenção de entrada de armas e drogas, a possibilidade de adotar os colegiados nos crimes federais será um avanço. A bandeira levantada pela Ajufe pode beneficiar também magistrados dos Judiciários estaduais, mas ainda não há previsão de que, uma vez aprovada, a nova regra se estenda aos estados.
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