ZERO HORA 27 de dezembro de 2015 | N° 18397
NELSON MATTOS*Não gosto de escrever sobre política, pois sou, afinal de contas, um especialista em tecnologia. Porém, seria irresponsabilidade não abordar os projetos de lei absurdos sendo discutidos no Congresso brasileiro. Por serem tantos, é bem provável que algum seja aprovado, pondo fim à internet livre como a conhecemos, com conteúdo da mídia social sendo criminalizado, cidadãos sendo monitorados pelo governo e políticos proibindo que erros, falcatruas e corrupções sejam expostos na internet.
Sancionado em abril de 2014, o Marco Civil da Internet garante a liberdade de expressão, o direito de saber, a proteção da privacidade individual e a neutralidade da rede. Com 100 milhões de brasileiros online usufruindo dos direitos garantidos no Marco Civil, a internet tornou-se, na visão do Congresso de 2015, uma ameaça, pois cada vez mais brasileiros a usam para expor atos ilícitos, reclamar e exigir mudanças.
A legislação em trâmite é uma reação direta ao crescente poder da voz do povo na web. Sentindo-se expostos e ameaçados, alguns políticos tentam restringir a liberdade de expressão, o direito de saber e a privacidade individual, criando uma infinidade de leis que limitam o acesso à internet, sobretudo pela população mais jovem (a mais ativa na internet), censurando e criminalizando a publicação de praticamente qualquer vídeo, fotografia e conteúdo não alinhado com sua ideologia política.
O que mudou de 2014 para 2015? Um dos maiores adversários do Marco Civil, o então deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) lutou contra a legislação até ela chegar à mesa de Dilma – forte adepta do Marco Civil – e ser assinada. Um ano depois, com Dilma enfraquecida e Cunha agora presidente de uma Câmara muito mais conservadora, a internet é vista de forma totalmente diferente pela maioria do Legislativo. Além de autor, Cunha apoia inúmeras leis que acabam com garantias do Marco Civil e criminalizam o uso das mídias sociais. Para continuar operando na obscuridade, o Congresso tenta impedir que a população use livremente a internet.
O Projeto de Lei (PL) 215 altera o Marco Civil, permitindo a remoção de conteúdo da web associado a qualquer pessoa. Permitir que indivíduos apaguem dados constrangedores, o chamado “direito ao esquecimento”, aprovado pela União Europeia, é aceitável. Segundo o Marco Civil, se publicarem mentiras a seu respeito, o conteúdo pode ser retirado por ordem judicial, de forma a não eliminar a liberdade de expressão ou permitir que informações importantes sejam escondidas do público. Na União Europeia, cidadãos comuns – não as figuras públicas – podem solicitar a desindexação de certos conteúdos sobre seu passado dos resultados de busca. Porém, os dados não são removidos da web. A versão brasileira permitiria que figuras públicas solicitassem, sem ordem judicial, não só a desindexação de conteúdo que considerem difamatório, prejudicial ou meramente desatualizado, mas também exijam que seja totalmente deletado da web. Com ordem judicial, a polícia teria acesso ao endereço e CPF do autor da publicação.
A lei proposta permitirá que políticos censurem a mídia social e a internet praticamente ao seu bel-prazer e também possam penalizar a pessoa que postou. Você não quer saber o nome dos envolvidos no escândalo da Petrobras? Se esse PL for aprovado, será difícil obter essa informação na web.
Com emendas de aliados de Eduardo Cunha, o PL 215 foi apelidado de “O Espião”, pois obriga internautas a compartilharem dados pessoais (CPF, endereço completo e telefone) e provedores de serviço como Google e Facebook a armazenar e fornecer tais dados quando solicitados. Uma versão anterior chegou ao absurdo de permitir que qualquer “autoridade” tivesse acesso aos dados sem ordem judicial! Hum... e as garantias individuais dos internautas? Será que os brasileiros continuarão se manifestando abertamente na internet, criticando políticos, exigindo o fim da corrupção ou simplesmente expressando sua opinião? Acho difícil. Infelizmente, com o apoio de Eduardo Cunha, o PL 215 teve sua tramitação acelerada, já foi aprovado nas comissões da Câmara e logo será votado em plenário.
Se esse não for aprovado, há tantos outros projetos de lei, que será difícil que nenhum o seja. O PL 1.879 determina que provedores que publicam conteúdo, como Facebook, YouTube, WhatsApp, mantenham registro dos usuários, inclusive nome e CPF. Já o PL 2.712 obriga provedores a remover, por solicitação de qualquer um, referências sobre sua pessoa na internet, nas condições que especificar. De autoria do próprio Cunha, o PL 7.881, de 2014, obriga a remoção de links dos mecanismos de busca que façam referência a dados irrelevantes ou defasados sobre alguém. Chega ao absurdo de permitir que a remoção seja exigida sem ordem judicial e por qualquer pessoa, não necessariamente a “prejudicada”.
Prestes a ser votado, o PL 1.676 tornaria passível de pena de até dois anos de prisão filmar, fotografar ou gravar a voz de alguém sem autorização expressa. Mesmo selfies seriam potencialmente criminosas, se aparecer alguém na foto além de você. A pena pode chegar a seis anos se a cena for publicada na internet.
O PL 1.547 e o PL 1.589 tornam mais rigorosa a punição dos crimes contra a honra cometidos mediante disponibilização de conteúdo na internet. Como se não bastasse, o deputado Cláudio Cajado (DEM-BA), apoiado por Eduardo Cunha, relatou que prepara um PL para identificar e punir quem crie páginas ofensivas e difamatórias contra parlamentares na internet, bem como provedores que hospedem tal conteúdo. Assim, se você “ofender a honra” de um parlamentar com piadinhas no Facebook, tanto você quanto o Facebook estarão sujeitos a processos penais e cíveis. Tem cabimento? Pois é, segundo Cajado, a proposta pode ser votada em regime de urgência pela Câmara.
De autoria da bancada mais conservadora, o PL 2.390 cria um registro central de internautas para proibir crianças e adolescentes de acessar conteúdo impróprio. Só que a lei pode ser utilizada para impedir que jovens brasileiros – justamente os usuários mais ativos – acessem as principais plataformas sociais, como YouTube e Twitter. Ou seja, as ferramentas de movimentação e exposição na internet.
Alguns parlamentares chegam ao cúmulo de pensarem em PLs que exijam que empresas da internet criem clínicas de tratamento para viciados em internet. Empresas de cigarro são obrigadas a ter clínicas para fumantes? E as de bebida? Decididamente, a internet ainda é vista por muitos como um “mal” a ser “controlado”.
É óbvio que, quanto maior o número de PLs sendo gerados, maior a probabilidade de aprovação de um projeto que faça extinguir as garantias à liberdade de expressão, ao direito de saber, à privacidade e ao anonimato dos internautas brasileiros estabelecidas no Marco Civil. Políticos que buscam esconder fatos veem a internet como uma ameaça e estão fazendo de tudo para criminalizá-la.
Chegou a hora de a geração digital do Brasil se levantar em apoio à internet livre e suas garantias no Marco Civil. Se não se mexer logo, terá uma surpresa muito maior do que a recente suspensão do WhatsApp.
*Doutor em Ciências da Computação, gaúcho, residente no Silicon Valley, Califórnia
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