Justiça
COMISSÃO: QUE VERDADE SERÁ REVELADA?
Relatório que institui a Comissão da Verdade, destinada a investigar arbitraridades praticadas pela ditadura militar, prevê a manutenção do sigilo das informações que vierem a ser manipuladas por seus membros - POR FÁBIO GÓIS , CONGRESSO EM FOCO, 19/10/2011 07:00
Em seu primeiro compromisso internacional como presidenta, na Argentina, Dilma Rousseff deixou claro o papel dos direitos humanos em sua gestão. Na ocasião, Dilma, torturada na ditadura militar, encontrou-se com representantes do grupo Mães e Avós da Praça de Maio, senhoras que tiveram familiares vitimados pelo regime de exceção no país vizinho. O recado de Dilma era claro: as arbitrariedades praticadas durante a ditadura, as quais ela mesma foi vítima, deveriam ser detalhadas e tornadas públicas, em nome da memória recente do país. O tema, porém, é delicado, e parece haver uma grande distância entre o desejo manifesto e o que efetivamente virá a ser feito. Nem tudo o que se praticou de abuso e de ilegal deverá vir à tona, se depender do colegiado prestes a ser criado com o objetivo de investigar os “anos de chumbo”.
Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, um grupo a ser composto por sete nomes de livre indicação da Presidência da República. O colegiado terá a responsabilidade de, no prazo de dois anos contados a partir de sua instalação, elaborar um “relatório circunstanciado” sobre registros de violação de direitos individuais e casos de desaparecimento ou morte de opositores do regime militar. A proposta ainda amplia o período da investigação. O país viveu sob ditadura militar entre 1964 e 1985, mas o período proposto para a apuração é compreendido entre 1946 e 1988. Fica compreendido, assim, o período de democracia que vai do fim da ditadura de Getúlio Vargas (em 1945) até o golpe militar em 1964, e parte do governo José Sarney (que foi de 1985 a 1989). “Atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações” devem constar do documento final. Todo o acervo documental e de multimídia preparado pela comissão será encaminhado ao Arquivo Nacional e aberto ao público.
Isso, porém, não significa que os documentos que forem analisados pela comissão se tornarão públicos. O problema, alegam familiares de vítimas da ditadura e representantes de entidades, é que os procedimentos de análise serão sigilosos durante os 24 meses de funcionamento da comissão. O comissariado terá acesso irrestrito a todos os tipos de documentos oficiais, independentemente do grau de sigilo, mas estão proibidos de revelar seu conteúdo. Ou seja, todo o procedimento de pesquisa e compilação de dados, reclamam os críticos da matéria, ficará restrito a apenas sete pessoas, enquanto milhares de outras diretamente afetadas pelo assunto ficarão apartadas da apuração. Em suma, ainda que venham a surgir para a análise da comissão os célebres arquivos secretos da ditadura, eles continuarão secretos.
A polêmica está no artigo 4º, parágrafo 2º: “Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. Logo adiante, no artigo 5º, o texto define que as atividades executadas na comissão “serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção de sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoas”. Quem violar as regras de privacidade do colegiado, lembra o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), será punido pela legislação vigente.
Erro de interpretaçãoCiente da polêmica que os artigos sobre sigilo já começam a causar, Aloysio Nunes Ferreira garante que está havendo um erro de interpretação sobre o que diz a lei. O que se deseja, diz ele, é apenas garantir a possibilidade de manter algum fato em sigilo para não atrapalhar o desfecho das investigações. “O sigilo no texto tem de ser visto no conjunto. O que o texto diz é que, durante a investigação, pode haver momentos em que a comissão não revele documentos sobre fatos que ela está investigando. Isso é normal em qualquer investigação”, disse ontem (terça, 18) Aloysio ao Congresso em Foco. Se hoje Aloysio faz oposição a Dilma, nos Anos de Chumbo eles eram aliados na ideia de fazer uma revolução armada no país. Na época, Aloysio deixou o Partido Comunista Brasileiro para ingressão na Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de esquerda que ingressou na luta armada. Com o codinome de “Mateus”, Aloysio participou do “assalto ao trem pagador”, uma das mais ousadas ações da guerrilha no período, o assalto ao trem pagador da antiga estrada de ferro Santos/Jundiaí.
Lembrando que as atividades da comissão ganharão publicidade com o documento final. Além disso, ele confia na aprovação da Lei de Acesso a Informação Pública, definida em projeto já aprovado na Câmara e à espera de votação no Senado, que deve vedar “qualquer grau de sigilo” a documentos oficiais que versem sobre direitos humanos. Por enquanto, porém, como tem mostrado o Congresso em Foco, a tramitação da Lei de Acesso vem sendo barrada por ações do senador e ex-presidente Fernando Collor.
Documentos secretos: a discussão promete ser longa“O projeto [da comissão] tem uma perspectiva de deslindar de maneira mais ampla os mecanismos, as conexões da máquina repressiva com as instituições da sociedade, o meio empresarial etc”, acrescentou Aloysio. O senador pensou em alterar o período de análise dos atos arbitrários para 1964-1988, mas desistiu da ideia.
EmendasAloysio disse não se importar com a possibilidade de a CCJ, com maioria governista, aprovar urgência para a votação em plenário. “Estou pronto para o debate.” O senador paulista informou ainda que apresentará hoje (quarta, 19) seu relatório na CCJ, e que nenhum senador apresentou emendas ao texto principal, por ele classificado como “bom”. Ontem (18), oito sugestões, que podem ser formalizadas em emendas, foram apresentadas em audiência pública sobre o assunto realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH). Foi quando entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e convidados como João Vicente Goulart, filho do ex-presidente da República João Goulart (deposto no golpe de 64), criticaram, além da manutenção de sigilo, o fato de a comissão ter prazo de apenas dois anos – suficientes, defende Aloysio.
“Essa comissão não vai começar do zero. E acho importante que ela esteja circunscrita ao mandato da presidente Dilma Rousseff, porque a presidente tem demonstrado muito empenho em seu funcionamento, no seu êxito. Além do mais, a comissão não vai dar a última palavra sobre isso nem vai produzir uma verdade oficial”, observa o tucano, para quem há a possibilidade de prorrogação do prazo ou, na hipótese da insuficiência dos trabalhos, de que instrumentos legislativos possam completar a tarefa da comissão – para tanto, ele diz considerar mesmo as criticadas medidas provisórias, “se houver necessidade de prorrogar”.
Na conta da CasaO trabalho da Comissão da Verdade, classificado como “serviço público relevante”, será remunerado (R$ 11.179,36 mensais) e amparado pelo suporte técnico, administrativo e financeiro da Casa Civil, em cujo âmbito a comissão funcionará. Os integrantes terão ainda, como estabelece o parágrafo 3º do artigo 7º, direito a passagens aéreas e diárias de hospedagem “para atender aos deslocamentos, em razão do serviço, que exijam viagem para fora do local de domicílio”.
Para compor o grupo, diz o projeto, o indicado deve ser brasileiro “de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como o respeito aos direitos humanos”. Estão impedidos de fazer parte da comissão dirigentes de partidos políticos (à exceção dos membros honorários); ocupantes de cargos em comissão ou função de confiança, em qualquer nível da administração pública; ou aqueles que não ostentem imparcialidade em relação ao propósito do trabalho (militares, ex-militantes comunistas, familiares de vítimas etc).
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - A ideia de rever crimes durante o regime militar é ótima e oportuna. Entretanto, como está sendo conduzida, esta comissão mais parece de retaliação do que apuração. Assim, a verdade que aparecerá será apenas de uma face da moeda. A outra permanecerá oculta?
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