AS RUAS E A LEI
Justiça

AS RUAS E A LEI




ZERO HORA 22 de fevereiro de 2014 | N° 17712

POR JORGE BARCELLOS


As ideias fora do lugar




Atualmente existem 16 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional com o objetivo de combater a violência presente nos movimentos surgidos em junho de 2013. Desses, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 499, de 2013, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), tem sido objeto de debates porque define os crimes de terrorismo no Brasil. O que diz o projeto de Jucá em seus 14 artigos? Primeiro, que crimes de terrorismo são aqueles capazes de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à vida”, mas é nos detalhes que mora o perigo: o projeto discrimina locais e agentes passíveis de enquadramento na definição, desde espaços como o transporte coletivo aos pontos de grande aglomeração de pessoas. A oposição dos movimentos sociais ao texto da lei tem fundamento: o art. 4º, ao definir o terrorismo mediante dano a bem ou serviço essencial, é, de longe, o mais problemático, pois reúne justamente os espaços de organização de tais movimentos: hospitais, casas de saúde e instituições de ensino passam a serem considerados locais onde atos criminosos são capazes de serem enquadrados como terroristas.

O problema do projeto é o conceito de terrorismo. Para o texto, “atos concretos de terrorismo” são a “ofensa a vida, integridade física, saúde ou privação de liberdade”. Suas motivações seriam as de natureza “ideológica, religiosa, politica ou de preconceito racial ou ético”, com o motivo concreto de “provocar ou infundir pânico ou terror”. É que o projeto considera o debate político e filosófico inferior ao jurídico, quando é justamente o contrário.

No projeto, estão misturados elementos dos quatro períodos que ajudaram a definir o terrorismo ao longo da história: o Terror Jacobino (século 18), o anarquismo do século 19, as lutas armadas do século 20 e o 11 de setembro de 2001. No primeiro período, o conceito ganha definição positiva, ligada ao virtuosismo e ao patriotismo. No segundo, o movimento anarquista internacional realiza atentados a diversos líderes mundiais e desenvolve técnicas que inspirarão terroristas e antiterroristas. No terceiro, o termo passa a ser usado para qualificar adversários políticos. No quarto, consolida-se o terrorismo como “imagem do mal” com o 11 de setembro e inaugura-se a era da “Guerra ao Terror”.

As reminiscências dessas quatro épocas estão por todo o texto do projeto apresentado ao Senado: o anarquismo inspira o principal alvo desta legislação, o movimento Black Bloc; tal movimento vê sua própria ação violenta como ato heroico e positivo; o governo, para atender o clamor popular, leva adiante uma lei cujo efeito provável é autorizar a enquadrar qualquer movimento social – e finalmente, face à violência das ruas, é hora de o Brasil ter sua própria “Guerra ao Terror”.

Mas “definir o terrorismo pelo emprego do terror é uma tautologia”, diz o sociólogo Xavier Crettiez em As Formas da Violência (Edições Loyola, 2011). Quer dizer: o que escapa à compreensão dos congressistas é o fato de que a própria natureza do “terror” e do “pânico” exige definição melhor – “terror” e “pânico” em relação a quê?

Para começar, a definição estrita de terrorismo excluída do projeto possui três elementos centrais: a criação de um clima de terror, a utilização da violência cega e a escolha de inocentes como alvo. A definição ampliada inclui o elemento simbólico que falta a todas as definições anteriores, o de projetar seu agente no terreno do desafio e da morte. Os “verdadeiros” terroristas se recusam a subordinar sua ação a um princípio de separação entre alvos políticos justos e vitimas civis injustas. Eles destroem a distinção entre espaço público e privado, pois tomam a população civil como alvo para pressionar o governo e recusam a lógica humanista do contrato social que fundamenta a democracia, usando a própria vida como argumento de dissuasão. Os assim chamados “nossos” terroristas incendeiam carros, fazem enfrentamentos dispersos com forças policiais e produzem outras expressões de violência de caráter coletivo, eruptivo e fora de controle, sim, mas são incapazes de se deslocar para a esfera simbólica – graças a Deus! – porque sabem que não há nenhum paraíso a receber em troca. Tudo o que fazem ainda é expressão de violência urbana e não terrorismo propriamente dito, e a recuperação do controle social deve ser feita por mais políticas sociais e pela aplicação da legislação penal pertinente.

A dificuldade de definir o terrorismo ocorre porque é impossível dissociá-lo de uma questão avaliatória: a moral do terrorismo. Por isso, definir o que é terrorismo em si é mais complicado do que defini-lo apenas pelos males ou prejuízos que produz. Parcela dos jovens, uma minoria, utiliza o terror, mas isso não significa que sejam terroristas, eis a questão. Sua natureza não é terrorista, assimilaram todas as armas terroristas exceto uma: a de pôr em jogo sua própria morte (Baudrillard): felizmente ainda há mães que buscam seus filhos nas ocupações. Essa falta de base conceitual e filosófica é responsável pelos inúmeros problemas do projeto: suas definições são superficiais, não esclarecem o que é desordem em local público, favorecem prisões sem identificação e possibilitam o retorno ao autoritarismo. Mas o principal problema é que ele recoloca o medo em operação, pede o silêncio da sociedade em troca de segurança. Do jeito que o projeto está, sua consequência será transformar o país de uma democracia de eleições em uma democracia de opinião pública, ou numa democracia emocional, como caracteriza o filósofo e urbanista Paul Virilio em Cidade Pânico. Para Virilio, a violência precisa ser enfrentada sim, porque estamos ingressando numa situação de guerra civil que utiliza um novo tipo de arma, a informação, e que se desenvolve em um novo front, não apenas das ruas, mas das telas. É o que ele chama de “Pânico Frio”. Quando os Estados não podem mais se atacar, como no equilíbrio da Guerra Fria, voltam-se para seu próprio povo, produto da transferência da guerra da campanha para as concentrações urbanas, para as ruas das cidades. Os jovens violentos deste contexto global de “Pânico Frio” ainda são “a infância do terror”, mas sequer o termo é adequado, já que a lei antiterrorismo é produto mais da paranoia coletiva do que um problema social real e a Copa, o pretexto fútil para estabelecer uma estrutura punitiva. Frente à violência de uma minoria de jovens, as leis existentes devem ser cumpridas e os demais movimentos precisam pregar a paz, pois se trata, mais uma vez, de preservar as bases com que é feita a justiça na democracia. E a ênfase na defesa da vida deve triunfar.

POR JORGE BARCELLOS DOUTOR EM EDUCAÇÃO PELA UFRGS



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