Justiça
A MÁFIA DO JOGO - EXPLORANDO O VÍCIO DE APOSTAR
A MÁFIA QUE EXPLORA O JOGO ILEGAL SE APROVEITA DA FRAGILIDADE DOS APOSTADORES PATOLÓGICOS. AS ARTIMANHAS DO JOGO ILEGAL SÃO TEMA DO SEGUNDO DIA DESTA SÉRIE ESPECIAL - ITAMAR MELO, ZERO HORA, 09/05/2011
Em um fim de tarde, depois do trabalho, uma assistente contábil de 49 anos foi fisgada pelas promoções anunciadas na fachada de um supermercado, no trajeto para casa, em Porto Alegre. Estacionou, avançou pelos corredores, escolheu leite, pão e carne. Estava no caixa, pronta para pagar e seguir caminho, quando uma porta se abriu e revelou um salão repleto de caça-níqueis. Mulheres jogavam lá dentro, os olhos vidrados.
Fazia quatro anos que ela não apostava. Afundara no vício no passado e voltara à tona com sacrifício. Agora tropeçava no jogo de novo. O colorido dos monitores, a sedução dos sons, o palpitar de antigas emoções, a apenas dois passos, ali dentro do supermercado, atingiu-a em cada nervo. Ela forcejou, mas sucumbiu. Entrou na sala e entregou-se de novo à jogatina alucinada. Uma vez mais, enfiou salários dentro das máquinas, deixou de pagar as contas, viu a família desmoronar.
A mulher foi vítima de uma armadilha letal para os viciados que tentam escapar à perdição do jogo: a onipresença dos caça-níqueis. Aproveitando a brandura da legislação e a compulsão desenfreada dos apostadores, a máfia que explora as máquinas ilegais espalhou-as por toda a parte. Cercados, acossados por elas, os jogadores precisam lutar contra a tentação a cada passo. Chegam a organizar mutirões para denunciar locais. Não adianta. Os caça-níqueis voltam sempre.
Segundo o delegado Cleber Ferreira, diretor da Delegacia de Polícia Regional de Porto Alegre, só na Capital há em operação mais de 4 mil máquinas – oito para cada quilômetro quadrado. Uma parte delas sequer está escondida. ZH encontrou-as em lotéricas, bares e lancherias, ao alcance de qualquer criança.
– Só na minha rua, há três bares com caça-níqueis. Eu desvio do meu caminho para não passar por eles – conta um morador do bairro São José que perdeu todo o patrimônio no jogo.
As casas maiores jogam baixo para atrair as vítimas. Quem já jogou, mesmo que há anos, passa a ser bombardeado por telefonemas ou torpedos. São convites para visitar o local, tomar um café colonial, comer churrasco. O apostador que cede depara com os caça-níqueis e sucumbe. Para se proteger, o morador do bairro São José trocou o número do celular.
– É um cartel. Se você forneceu seu telefone para um, todos terão seu número. Para mim, ligam cinco, seis vezes por semana, de Porto Alegre, Esteio, Novo Hamburgo, Canoas. Avisam que uma casa abriu, oferecem jantar. Torpedos chegam todos os dias – conta uma empresária em recuperação.
Os barões da jogatina prosperam em meio à impotência das autoridades. Em três anos e meio, de 2007 a meados do ano passado, a Brigada Militar e a Polícia Civil da Região Metropolitana recolheram 42 mil caça-níqueis. Isso significa uma média diária de 32 máquinas fora de circulação. Com frequência, na semana seguinte o estabelecimento já está reaberto. O jogo de azar é apenas uma contravenção. Apanhado, o infrator não vai preso.
– Há casos de pessoas com 20 termos circunstanciados. A pena baixa estimula. Os lucros são altos, fáceis e rápidos. Nossa estratégia é descapitalizá-los com apreensão de dinheiro e equipamentos e pela aplicação de multas mais altas, que podem chegar a R$ 30 mil, mas há casas que movimentam mais do que isso em um dia – diz José Francisco Seabra Mendes Júnior, coordenador da Força-Tarefa de Combate aos Jogos Ilícitos do Ministério Público Estadual.
Essa política de descapitalização do contraventor soma pelo menos R$ 3,8 milhões apreendidos desde 2004, sem contar equipamentos. A resposta do setor foi desenvolver estratagemas para minimizar as perdas. Em lugar de concentrar cem ou mais caça-níqueis em um mesmo lugar, espalham-nos por cinco ou 10 endereços. Quando uma operação policial ocorre, o prejuízo se dilui. Outra reação foi miniaturizar o investimento. Hoje, os locais de aposta nada têm do glamour de um cassino. Costumam ser ambientes simples, camuflados com criatividade.
Em 2010, em uma operação do MP e da polícia, agentes entraram em uma loja de roupas da Avenida Assis Brasil, na Capital, e acharam, atrás de uma porta disfarçada, um centro de jogatina com 50 caça-níqueis. A polícia já fez flagras idênticos em floricultura, posto de combustível, estacionamento, residência e boate.
O gasto com as máquinas também se tornou irrisório para os vampiros do jogo. Em lugar dos equipamentos sofisticados de anos atrás, contrabandeados de Las Vegas (EUA), são usadas hoje caça-níqueis rudimentares, feitos em fundo de quintal, por menos de R$ 1 mil.
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