O Estado de S.Paulo 24 de fevereiro de 2014 | 2h 04
Denis Lerrer RosenfieldA morte de um cinegrafista da Band, atingido no crânio por um rojão disparado por um black bloc, tendo contado com a ajuda de outro membro do mesmo grupo, está suscitando uma série de reações indignadas. Algumas dessas reações têm conteúdo eminentemente político, para não dizer que vertem lágrimas de crocodilo. O apoio velado, para não dizer explícito, agora se traduz pela condenação. Ora, a impunidade com que tal grupo tem agido desde junho já anunciava um desenlace como esse. Era só questão de tempo.
Observemos que não se trata de um assassinato qualquer, como esses que são estampados todos os dias nas notícias impressas e televisivas. Há uma nítida tentativa de alguns responsáveis governamentais e formadores de opinião de desqualificar o componente político desse assassinato, como se fosse uma espécie de acidente que poderia acontecer a qualquer um. Desde junho a violência sob a forma de vandalismo, quebra-quebra e das mais variadas formas de intimidação tomou conta das ruas brasileiras. Mais recentemente esses mesmos grupos procuraram apropriar-se do movimento não violento dos rolezinhos, com o intuito de lhe conferir uma dimensão político-ideológica. Ainda mais recentemente, o MST ameaçou invadir o Supremo e o Palácio do Planalto fazendo uso explícito da violência, 30 pessoas sendo feridas. Transfere para as cidades o que já fazia no campo brasileiro.
Agem todos esses grupos impunemente, apoiados por movimentos sociais organizados e partidos de esquerda e extrema esquerda. Agora, com o assassinato político, todos procuram dissociar-se do ocorrido pela simples razão da condenação e do repúdio observados na opinião pública. Procuram dissociar-se do que até ontem, por assim dizer, apoiavam. Outro fato digno de nota nesse processo é que a qualificação de puro assassinato procura retirar dessa morte a conotação propriamente política, como se não fossem os grupos de extrema esquerda que estivessem por trás - ou à frente - deles. É como se a "esquerda" não tivesse nada que ver com isso.
Imaginem se fosse um grupo de extrema direita o responsável por esse assassinato. Os formadores de opinião "engajados" não cessariam de ressaltar que a direita é culpada de todo o acontecido. Palavras como "fascistas" seriam proferidas e escritas diariamente. Como se trata da "esquerda", procura-se não mais falar disso!
Nas jornadas de junho já havia ficado patente o charme que a violência dos black blocs exercia sobre uma esquerda nostálgica do período áureo do marxismo. É como se se tratasse de um recurso legítimo dos descontentes e revoltados contra o status quo, o "capitalismo", a "burguesia", os "conservadores" e a direita em geral. Tudo estaria justificado em nome da moralidade de um fim maior, que seria uma sociedade sem classes, chamada de socialismo ou comunismo. Quando a violência era mencionada, o objetivo era apenas denominar a ação policial mediante o recurso da força. O jogo ideologicamente encenado era o seguinte: a violência da extrema esquerda seria legítima e moralmente justificada, enquanto o uso da polícia para coibir essa violência seria ilegítimo e imoral. Mesmo máscaras chegaram a ser justificadas. Seria a estética de uma violência glamourizada.
A extrema esquerda, por exemplo, personificada no PSOL, que agora procura dissociar-se do assassinato do cinegrafista da Band, dizia há pouco tempo, na fala de seu secretário-geral: "Em tese, as táticas black bloc dispõem-se a proteger manifestações da sociedade civil contra ações truculentas das forças do Estado". E ainda completou: "Não nos parece que o conceito da tática black bloc seja algo retrógrado ou mesmo indesejável em essência e propósitos originais. É algo progressivo, politicamente moderno, trazido pelas mãos da dialética na História". Eis a "modernidade dialética" do assassinato, travestido de ato revolucionário.
Eis um discurso da Academia, que deveria ser um lugar de inteligência, o que não é, aliás, manifestamente o caso: "Ao chamar a atenção para os bancos, para as grandes marcas e para o Estado brasileiro, o Black Bloc resgata a atenção dos meios de comunicação e a redireciona para o sistema econômico e político que está na gênese da verdadeira violência da nossa sociedade". Eis, enfim, a violência revolucionária apresentada como moralmente legítima. O assassinato faz parte desse percurso!
Há uma mentalidade reinante que tende a justificar qualquer ato violento por razões de ordem pretensamente política, como se fosse válida a concepção marxista da luta de classes. Os conflitos seriam estruturais por seu caráter de classe, de modo que qualquer ação que visasse a destruir o status quo capitalista seria legítima. A violência, nessa perspectiva, seria moralmente justificada. Há o que poderíamos chamar de um marxismo-leninismo difuso que se apresenta sob a forma do politicamente correto.
Segundo essa abordagem, a violência seria somente um meio da classe dominante visando a assegurar a exploração dos trabalhadores, sendo a polícia o seu instrumento. Note-se que, na grande maioria das notícias e análises, o foco esteve centrado na dita violência policial, como se o uso legítimo da força não fosse monopólio do Estado. Intencionalmente, a causa foi confundida com o efeito. O uso policial da força, reativo, foi tido como se fosse a causa. A violência causadora, a dos grupos de extrema esquerda, era tida por moralmente válida, sendo uma ferramenta legítima da luta política.
Uma vez que esses grupos conseguiram impor a sua visão, as forças policiais foram desmobilizadas. Passaram a observadoras das cenas de violência, não intervindo. A impunidade abriu o caminho para que a violência se generalizasse. Não mais contidos, os grupos de extrema esquerda passaram a aumentar o grau de violência. As autoridades públicas, nesse sentido, têm também a sua parcela de responsabilidade.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
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