ZERO HORA 31 de março de 2013 | N° 17388
EDITORIAIS
O Brasil é um país que cria leis para obrigar o cumprimento de outras leis. A constatação da historiadora Mary del Priore, do Rio de Janeiro, em recente entrevista a este jornal, resume bem o paradoxo existente entre o país real e o país legal. No primeiro, estimuladas por séculos de transgressões, jeitinhos e impunidades, as pessoas descumprem normas elementares de convivência – furam filas, jogam lixo no chão, ouvem música em alto volume, não recolhem o cocô do cachorro, desrespeitam regras de trânsito, tentam levar vantagem em tudo. No segundo, legisladores de todas as instâncias federativas elaboram leis – algumas verdadeiramente absurdas – com a intenção de implantar urbanidade à força.
É o que pretendem os administradores públicos porto-alegrenses com a lei que regula a prioridade nos assentos de transporte coletivo para idosos, gestantes e pessoas com deficiência. De acordo com a norma recém implantada, motoristas e cobradores deverão exigir obediência dos passageiros, sob pena de autuação e multa para a empresa concessionária do serviço de transporte. Parece simples, mas basta imaginar uma situação prática para que se perceba a dificuldade de aplicação da medida, pois os conflitos são previsíveis e inexiste estrutura de fiscalização eficiente.
Assim tem sido neste país em que a cultura, os interesses, as práticas sociais e as questões jurídicas se revelam muitas vezes incompatíveis. Existe lei para tudo, mas raramente ela é acompanhada de vontade política, de fiscalização e de força coercitiva para que seja efetivamente aplicada. É muito fácil atribuir todas as mazelas de comportamento à falta de educação do povo. Se só tivéssemos cidadãos educados e conscientes de seus deveres, obviamente não precisaríamos de leis. Mas a realidade é outra: no seu conjunto, a população brasileira abrange bons e maus cidadãos, honestos e desonestos, responsáveis e irresponsáveis, obedientes e infratores.
Temos que investir cada vez mais em educação, é verdade, tanto na formal quanto na familiar. Mas essa providência, que tende a levar décadas até se transformar numa cultura satisfatória de convivência civilizada, não deve impedir uma revisão de conduta permanente do que continua-mos fazendo agora. Mesmo que nos falte uma base sólida, talvez possamos manter de pé o edifício da civilidade evitando a sobrecarga de maus exemplos no andar de cima, incluindo-se aí o excesso de leis inúteis e inaplicáveis que nossos legisladores continuam produzindo por pura demagogia. Também é fantasioso, mas conforta pensar que todo esse emaranhado de códigos e regramentos poderia ser substituído pela Constituição Federal sugerida pelo também historiador Capistrano de Abreu, com apenas um artigo e um parágrafo: Art. 1º Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. § único: Revogam-se as disposições em contrário. Existe lei para tudo, mas raramente ela é acompanhada de vontade política, de fiscalização e de força coercitiva para que seja efetivamente aplicada.
O editorial ao lado foi publicado antecipadamente no site e no Facebook de Zero Hora, na sexta-feira. Os comentários selecionados para a edição impressa mantêm a proporcionalidade de aprovações e discordâncias entre as 155 manifestações recebidas até as 18h de sexta. A questão proposta aos leitores foi a seguinte: Editorial condena a criação de leis inúteis e de difícil execução. Você concorda com a crítica?
O leitor concorda
Concordo. O cipoal legislativo já é difícil de desemaranhar. Somem-se a ele leis sem previsão de punição ou cuja fiscalização é delegada a terceiros, nesse caso motoristas e cobradores, que serão punidos pela falta de educação do povo, que utiliza a mesma matriz de pensamento de muitos políticos, sendo público, é território sem lei. A mãe corrupção e o pai impunidade educam pelo exemplo. Ângela Inês Maieski Novo Hamburgo (RS)
Não precisamos de mais leis, mas de educação, principalmente na família. O respeito e regras de bom convívio substituem normas e leis. Aprendi isso quando era pequena. Hoje todos têm palavra e sugestões, mas não conseguem olhar ao seu redor e agir de acordo com valores. Jocelaine Polita Guaporé (RS)
Concordo. Leis forçam o indivíduo a obedecer ao que ele não quer respeitar. A educação é a melhor maneira de mudarmos a consciência do cidadão, poupando a nação de leis sem sentido, nem usabilidade. Juliano Pereira dos Anjos – Esteio (RS)
Concordo plenamente. Investir mais na educação, não somente nas escolas, mas também na educação familiar, seria de extrema importância para que leis inúteis não sejam mais criadas. Não devemos jogar toda a responsabilidade nos professores, que mal recebem para fazer seu trabalho e também o trabalho que deveria ser, teoricamente, de outras pessoas. A formação de um cidadão começa dentro de casa. Pais deveriam dar bom exemplo a seus filhos, para que nossa sociedade se torne diferente da atual. Uma sociedade com educação digna é, literalmente, uma sociedade com mais respeito e civilidade, onde todas as leis seriam, basicamente, inúteis, porque nossos costumes e culturas mudariam e a nossa convivência se tornaria cada vez melhor. Então, após a educação dos brasileiros progredir, a única lei que nós precisaríamos, seria, como diz Capistrano de Abreu: “Todo brasileiro deve ter vergonha na cara”. Gabriela Thewes Três Coroas (RS)
O leitor discorda
Se a lei é inútil, não deve ser executada. Nem se for difícil e nem se for simples. Já andei muito de ônibus e quase todas as pessoas respeitam os assentos especiais. A sociedade está a desabar ao nosso redor, o governo age pior que traficantes de drogas e querem nos convencer de que não juntar o cocô de um cachorro é falha grave. O povo tem culpa quando vota e escolhe líderes que julgam lutar por seus interesses quando de fato o interesse único destes é não resolver problema algum! Márcio Damin – Porto Alegre (RS)
Francis Barrozo
A lei no Brasil é como uma fachada de igreja para esconder um bingo.
Leonel Lazouwnik
Capitão Óbvio escreve os editoriais de ZH.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - O grande problema no Brasil é que as leis são feitas em prol do direito particular e do direito corporativista dos membros do Poder, esquecendo a supremacia do interesse público, os limites dos recursos públicos e as mazelas de uma maquina pública incapaz de administrar, executar e aplicar as leis com eficácia e coatividade.
Temos uma Constituição toda costurada por mais de 70 emendas com algumas delas contraditando dispositivos aprovados pelos constituintes. Os projetos, na sua maioria, apresentados pelos parlamentares são comemorativos, homenagens e focados em verbas para festas populares. Os mais importantes projetos são apresentados pelo Executivo. Por outro lado, o judiciário exerce um ativismo todo particular aplicando as leis que lhe interessam colocando a constituição federal mal redigida, assistemática, detalhista, confusa, benevolente e com farto recheio de privilégios corporativos e artifícios para declinar deveres e empurrar responsabilidades como alegação e salvaguarda de suas interpretações.
Deveria ter uma segunda dispositivo na lei proposta pelo Capistriano de Abreu:
Art. 1º Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Art. 2º Obriga-se o Sistema de Justiça a executar e aplicar com coatividade, agilidade e coerência.
§ único: Revogam-se as disposições em contrário.
Se não o povo brasileiro não for capaz de obrigar a Justiça e fazer parte de um Sistema integrado, ágil, coativo e comprometido com a supremacia do interesse públicos, leis como a de Capistriano de Abreu serão desmoralizadas e inúteis diante das mazelas que contaminam os instrumentos de justiça e da "falta de vontade política, de fiscalização e de força coercitiva".
loading...
EDITORIAL ZERO HORA 26/06/2011 O Brasil nunca produziu tantas leis quanto nos últimos 10 anos. Recente levantamento divulgado pelo jornal O Globo mostra que a União e os Estados editaram entre os anos 2000 e 2010 nada menos do que 75 mil normas oficiais,...
ZERO HORA 05 de janeiro de 2014 | N° 17664 EDITORIAL INTERATIVO O ano começou sob polêmica em São Paulo, onde a prefeitura regulamentou uma lei, de maio do ano passado, que pune com multas elevadas quem for flagrado com som alto em ruas, postos de...
ZERO HORA 25 de agosto de 2013 | N° 17533 EDITORIAL INTERATIVO A prefeitura do Rio de Janeiro começou a multar pessoas que jogam lixo na rua. As multas variam entre R$ 157, para quem descarta resíduos pequenos como bagana de cigarro ou palito de fósforo,...
ZERO HORA 16 de fevereiro de 2013 | N° 17345. ARTIGOS Anderson de Mello Machado* É da tradição brasileira a edição de leis penais sob pressão popular e midiática, quase nunca racional, após episódios cruéis ou simplesmente de grande repercussão...
Leitores lamentam vandalismo - ZERO HORA 19/07/2011 Os atos de vandalismo aos contêineres recém-instalados pela prefeitura de Porto Alegre estimularam leitores a se manifestar. Para Graça Garcia, é preciso “dar um basta nos pichadores e depredadores...