Justiça
SATURAMENTO E INCAPACIDADE - Nove vezes mais ações do que juízes
TRIBUNAIS LOTADOS. Tudo acaba na Justiça. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça mostra que gaúchos recorrem mais ao Judiciário do que habitantes de outros Estados do país, tanto em ações de 1º grau quanto de 2º grau - GUSTAVO AZEVEDO E HUMBERTO TREZZI, ZERO HORA, 26/06/2010
Trabalho no intervalo do almoço. Trabalho na hora do jantar. Trabalho, quando deveria ficar com os filhos. É disso que mais se queixam os magistrados gaúchos, a se julgar pelo tema dominante no almoço de confraternização oferecido ontem pelo novo presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), João Ricardo dos Santos Costa.
O queixume dos magistrados está amparado em números que confirmam os relatos. Os juízes gaúchos são, disparado, os campeões nacionais em volume de processos para julgar, conforme a última pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No ano passado, ingressaram na Justiça 2,99 milhões de ações, para 641 magistrados (em 1º Grau) analisarem. Para cada grupo de 100 mil habitantes, o Rio Grande do Sul registrou em 2008 14.272 novos processos na Justiça de 1º Grau. O segundo lugar ficou com o Estado mais populoso, São Paulo, com 11.211 processos. A liderança gaúcha se repete na Justiça de 2º Grau. Nessa instância, o Estado contabiliza 3,8 mil casos novos por ano para cada 100 mil habitantes, ante 1,8 mil casos do segundo colocado, Mato Grosso do Sul.
O cientista social Alex Niche Teixeira, do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), concorda que os gaúchos têm um perfil mais parecido com seus vizinhos do Prata do que com outras partes do Brasil. E isso pode estar se refletindo na briga até o fim, nos tribunais, uma tradição de levar a sério as rixas.
Isso mostra, segundo ele, uma incapacidade dos rio-grandenses de resolver conflitos por vias informais. E a necessidade de um mediador institucional, o juiz, pode burocratizar e tornar lenta a solução de um caso que poderia ser rapidamente resolvido.
Com 19 anos de magistratura e 18 mil audiências no currículo, o juiz Flávio Mendes Rabello, da 16ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, nunca tinha enfrentado tantos processos quanto agora. Atualmente, são 6 mil casos nas suas mãos. A situação de Rabello deve demorar a melhorar. São cerca de 350 novos casos todo o mês.
– Enquanto as ações individuais se acumularem e não se buscar uma política de ações coletivas, o cenário será esse – ressalta o magistrado.
Nove vezes mais ações do que juízesEvidenciada na pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a busca incessante dos gaúchos por um acerto de contas nos fóruns sobrecarrega os juízes a um ponto jamais registrado.
Conforme a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), o número de magistrados gaúchos cresceu 35% nas últimas duas décadas. Na outra ponta, o volume de processos judiciais subiu 1.120%. Para se ter uma ideia, ingressaram 2,99 milhões de ações no Judiciário gaúcho em 2009. O número de processos aumentou mais do que a quantidade de magistrados.
Como o número de juízes é bem inferior à demanda, ocorrem dois fenômenos. O primeiro é que os magistrados transformam cada vez mais a própria casa num gabinete de trabalho. A juíza Maria Lúcia Boutros Zach Rodrigues, que atua em causas cíveis e de família no fórum regional da Restinga (Porto Alegre), perdeu a conta das noites em claro, com filhos recém-nascidos, examinando causas judiciais.
Na época, “serviço” significava levar dezenas de quilos de processos para o lar. Agora melhorou um pouco: com uma senha, ela consegue verificar as ações com um clique no computador, sem carregar peso. Mas a informatização trouxe um efeito colateral: a agilidade faz com que o juiz se julgue capaz de avaliar cada vez mais causas. Até o limite do estresse.
O segundo fenômeno é que os magistrados, mesmo aumentando a carga horária, não dão conta de tantos processos. Em 2008, ano da pesquisa do CNJ, o volume de processos que ingressou no Judiciário gaúcho foi 11% maior que o de casos resolvidos pelos juízes. Um acúmulo cuja tendência é aumentar a cada ano.
– Quando conseguimos unificar ações judiciais que são muito semelhantes, em vez de individualizar as causas, como acontece seguidamente nos processos envolvendo empresas telefônicas ou bancos, ganhamos muito mais agilidade. Mas aí sempre surge alguém tentando separar as causas e o processo empaca em outras instâncias – pondera o presidente da Ajuris, João Ricardo dos Santos Costa.
Menos acordos a cada anoCriados em 1996, para ser a válvula de escape da Justiça brasileira, os Juizados Especiais, chamados popularmente de pequenas causas, acabaram também entupidos de processos. Ontem, no Foro Central da Capital, cerca de 200 pessoas lotavam as salas de audiências à espera de uma definição para os seus problemas.
Em quase uma década, o número de casos novos na área cível mais que dobrou no Rio Grande do Sul, passando de 160,3 mil, em 2000, para 333 mil no ano passado. Essa avalanche se reflete também na queda nas conciliações, a razão de ser dos Juizados. Ao comparar as ações iniciadas e os processos que alcançaram acordos, os resultados demonstram que está cada vez mais difícil chegar a resultado satisfatório a todos.
Para o juiz Gustavo Alberto Gastal Diefenthäler, do 3º Juizado Especial Cível, os motivos pelo grande volume acumulado e a baixa nas conciliações estão diretamente ligadas à entrada desenfreada de ações contra empresas.
Briguentos por natureza - ROSANE DE OLIVEIRA - Editora Executiva de Política
Na visita que fez ao Rio Grande do Sul no início da semana, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Cesar Asfor Rocha, arriscou um palpite sobre o porquê de o Rio Grande do Sul ser recordista em demandas judiciais:
– O gaúcho é muito litigante. Gosta de briga. Talvez por ser um Estado de fronteira, de litígio.
A explicação do ministro, que nasceu no Ceará, coincide com o que se ouve dos magistrados gaúchos na tentativa de explicar não apenas o elevado número de processos – são mais de 4 milhões tramitando – mas também por que o Estado é o que mais recorre ao STJ.
O espírito litigante dos gaúchos pode ser medido pela natureza dos processos: da briga de trânsito ao desentendimento de vizinhos, tudo vai parar nos tribunais. O poder público, quando não cumpre suas obrigações, também contribui para o acúmulo de processos.
O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, João Ricardo dos Santos Costa, tem outras duas explicações: a consciência de cidadania, que explica o aumento das demandas na área do direito do consumidor, e a qualidade dos advogados gaúchos. Cita ainda uma terceira, que poucos têm coragem de mencionar: a atuação de escritórios de advocacia que correm atrás do cliente e estimulam o ingresso de ações, criando inclusive falsas demandas.
Médicos reclamam que trabalham com uma espada sobre a cabeça porque existe uma indústria do dano moral, fomentada pelo que o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, Paulo de Argollo Mendes, chama de “advogados de porta de hospital”.
A seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil trava uma guerra diária contra a propaganda enganosa feita por escritórios de advocacia. O presidente da OAB, Claudio Lamachia, lembra que a entidade já conseguiu tirar do ar propagandas pelas quais potenciais clientes eram estimulados a recorrer à Justiça para pagar juros menores do que os previstos em contratos:
– A OAB não vai admitir que advogados vendam sonhos aos clientes.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEAPor entender que a demanda é fruto do regime democrático que se deseja para o Brasil, acredito que o cenário de saturamento, incapacidade e ineficácia da justiça é fomentado por cinco causas:
- a primeira é uma das duas explicações do Sr. presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul:
a consciência de cidadania;
- a segunda é
a postura burocrata do poder judiciário brasileiro que elabora o processo e aplica a lei em cima do papel, desprezando a rapidez da oralidade e o apoio da forma filmada;
- a terceira é o
sistema inoperante do Poder Judiciário que centraliza todas os recursos e decisões nas cortes supremas;
- a quarta é a
inoperante estrutura judiciária brasileira regida por um número insuficiente de juizes togados recebendo salários iniciais extravagantes que incapacitam o poder judiciário, pois consomem 80% do orçamento e impedem investimentos em mais juízes, mais varas judiciais, tecnologia e aparato de assessoramento;
- A quinta é a
insegurança jurídica e judiciária provocada por uma constituição esdrúxula, leis divergentes, medidas alternativas, interpretações várias, vários recursos, amplos prazos e desmoralização dos juizes naturais e tribunais regionais, distanciando o Poder Judiciário dos delitos, das polícias, dos presídios, das demandas da sociedade e das questões de ordem pública e justiça social.
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