Por onde transitam as informações que circulam na internet? Milhares de quilômetros de cabos ligam as redes brasileiras ao resto do mundo, como exemplifica o mapa desta página. No primeiro dia da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, o discurso da presidente Dilma Rousseff deve esquentar a discussão sobre a estrutura da rede e os limites da espionagem de dados orquestrada pelos Estados Unidos.
A presidente Dilma Rousseff parece decidida a emancipar a internet brasileira. A revelação, no início do mês, de que a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) estaria acessando dados sigilosos da Petrobras foi o estopim. Dilma desenhou – e deve explicitar hoje – uma estratégia para tornar a rede no Brasil mais segura para os usuários e menos dependente dos EUA (leia mais na página ao lado). As propostas da presidente são tão ousadas como complexas. Entre criar um serviço de e-mail coordenado pelos Correios e negociar com Google e Facebook para que os dados de brasileiros sejam armazenados em território nacional, o Planalto chega a cogitar a construção de um novo cabeamento submarino ligando o Brasil à Europa.
O momento não poderia ser mais favorável à presidente, que deve aproveitar as atenções voltadas para si na manhã de hoje, quando abre a Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Frente a 192 líderes de Estado presentes, deverá dar o tom do debate internacional sobre espionagem, em resposta ao esquema de vigilância exposto pelo ex-agente da NSA Edward Snowden. Para especialistas da área de segurança, porém, o plano de separar a internet brasileira da rede americana é mais ambicioso do que pragmático.
Leonardo Lemes, coordenador do curso de Segurança da Informação da Unisinos, acredita que o foco deveria ser fortalecer a segurança interna, e não procurar tantas alternativas externas.
– Podemos criar pontos de troca de tráfego e ampliar canais de comunicação, mas nada disso vai adiantar caso não tenhamos tecnologias próprias de monitoramento, controle e proteção – avalia.
Apesar de acreditar que a ideia de criar uma internet independente é extrema, Demi Getschko, um dos pioneiros da web no Brasil, avalia que Dilma tem na fala de hoje uma boa oportunidade de pressionar Barack Obama por mais transparência na coleta de dados de usuários não americanos. Getschko crê ainda que a ideia de fazer um novo cabeamento entre Brasil e Europa é ineficiente, sendo mais indicada uma solução diplomática.
– Deveria haver acordos internacionais que dissessem que não é uma boa prática espionar dados que passem no seu país – indica Getschko, que atualmente coordena os projetos do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI.br).
O plano de Dilma, dadas as ressalvas, é executável. De acordo com especialistas, a parte mais delicada – e não necessariamente a mais trabalhosa – seria convencer empresas como Google e Facebook a armazenarem os dados de usuários brasileiros em território nacional.
– O Brasil representa uma parcela muito grande dos usuários dessas redes. Isso poderia ser um argumento, mas é difícil imaginar a Google construindo servidores no Brasil – explica Lemes.
Para Getschko, mesmo que fossem criados servidores nacionais, isso não significaria que os usuários brasileiros estariam mais protegidos:
– Mesmo que armazenem aqui, eles ainda estão suscetíveis à espionagem. Eles não deixariam de ser armazenados fora, só seriam “duplicados”.
Apesar de, em um primeiro momento, parecer radical, o governo brasileiro se torna símbolo do debate por uma internet mais plural e transparente. Depois de respostas apáticas do governo americano aos inquéritos de Dilma, ganha força hoje uma renovada discussão sobre os limites da vigilância digital.
Cidadãos de pátrias digitaisComputadores conectados, possibilitando a troca de informações e a construção de conhecimento de maneira colaborativa, independente de governos ou empresas. A world wide web concebida por cientistas pioneiros como Tim Berners-Lee está em xeque. Seria a hora de criarmos uma rede brasileira?
Quem adotou serviços como Facebook, YouTube, Tumblr, iTunes e Twitter optou por se tornar um cidadão destas empresas: conscientemente ou não, forneceu dados pessoais e se submeteu a regras. Mesmo discordando, muitos nem tiveram a chance de argumentar antes de ser deportados. Quem nunca foi banido ou conhece alguém que teve a conta suspensa ao postar conteúdo em desacordo com os termos do Facebook?
Propor medidas para se proteger contra a espionagem e cobrar mais transparência dos EUA é positivo. Criar um e-mail gerido pelos Correios, tentar alterar a rota de tráfego na rede ou nacionalizar o armazenamento de dados de usuários brasileiros são soluções questionáveis. Podem até não ser tecnologicamente impossíveis, mas criam novas dúvidas: é vantagem corrermos o risco de ser espionados pelo nosso governo?
Hoje muitos de nós colaboram para o fim da internet independente. Não porque desejamos a submissão do tráfego de rede aos Estados, mas porque ajudamos a concentrá-los nos servidores das corporações que escolhemos como nossas novas nações digitais.
Flores na chegada
Dilma Rousseff fará hoje, às 10h (horário de Brasília), o discurso de abertura da 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Antes do pronunciamento, a presidente se encontrará com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.
À tarde, no mesmo local, Dilma participará do Fórum de Alto Nível de Desenvolvimento Sustentável, que reúne ministros de Meio Ambiente e chefes de Estado. Amanhã de manhã, antes de retornar ao Brasil, ela estará em um evento do Goldman Sachs.
Ontem, na chegada à cidade, a presidente foi recebida com flores no hotel onde está hospedada em Manhattan (foto).
BARBARA NICKEL
Tom ditará a repercussãoFoi vestindo terninho preto e óculos escuros – no melhor estilo espião de cinema americano – que Dilma Rousseff desembarcou nos Estados Unidos para discursar hoje na abertura da 68ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Com o privilégio de abrir o debate entre os países, a presidente já avisou que usará o palanque para criticar as ações de espionagem americana reveladas pelo ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) Edward Snowden.
O discurso acontece uma semana após Dilma cancelar o encontro com Barack Obama por não ficar satisfeita com as explicações dadas sobre as ações de espionagem. No início do mês, vieram à tona documentos que revelavam que a Petrobras e a presidente eram vigiadas pelo governo americano. O impacto, no entanto, vai depender do tom que ela vai utilizar e das medidas propostas.
Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, afirma que o discurso brasileiro é sempre ouvido com bastante atenção, mas que não necessariamente traz consequências de maior relevância:
– Não está claro quão profundo ela vai ir no tema. Se não propuser nada de novo, pode ser apático, inclusive.
Se ela for incisiva na fala e apresentar alternativas viáveis para proteger a privacidade dos cidadãos, o assunto pode ganhar mais repercussão e pautar os discursos seguintes. Se, em vez disso, Dilma exagerar nas cores, pode passar por ingênua para o restante do mundo.
– Todo mundo sabe que existe espionagem no mundo da diplomacia. Não chega a ser nenhuma novidade. Ao mesmo tempo, nunca houve evidências tão claras de que o governo brasileiro foi alvo de espionagem. Dilma precisa dar uma resposta política, sim. Caso contrário, pode passar sinal de fraqueza. Mas não pode tratar o tema como se fosse algo totalmente desconhecido – afirma Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas.
Em fevereiro, os Estados Unidos estiveram envolvidos em um esquema de espionagem. Desta vez, porém, estavam do outro lado do balcão. Um relatório divulgado pela Casa Branca apontava que a China estaria por trás de ataques contra empresas e agências governamentais. Entre as vítimas, estariam gigantes da tecnologia, como Apple e Facebook. Como resposta, Obama ameaçou os asiáticos com medidas diplomáticas e comerciais.
*Colaborou Ângelo Passos
[email protected] CALDAS*