Justiça
NEGLIGENTE - O calvário do gaúcho condenado por engano
HOMEM ERRADO. O calvário do gaúcho condenado por engano. Estudante chegou a ser preso em meio à luta para provar o uso indevido de seu nome por ladrão de banco - HUMBERTO TREZZI, Zero Hora, 05/09/2010.
Morador de Sapucaia do Sul, Luís André da Silva Domingues, 36 anos, está mergulhado num pesadelo desde 6 de agosto, após uma cadeia de erros na polícia e na Justiça. Prestes a se formar em Engenharia Mecânica, empregado, sem antecedente criminal e benquisto no serviço, ele descobriu de uma hora para a outra que está condenado por arrombamento de um banco catarinense. Delito, aliás, cometido em uma cidade que sequer tinha ouvido falar, Campo Belo do Sul.
O que poderia ser um simples engano ganhou contornos dramáticos há duas sextas-feiras, dia 27, quando Luís foi algemado em delegacia da sua cidade. Só foi libertado após jurar, quase em lágrimas, que não é o criminoso cujo nome aparece nos computadores da polícia e da Justiça.
A via-crúcis de Luís André começou quando um oficial de Justiça bateu na porta da sua casa, dia 6. O estudante de Engenharia na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), que jamais havia se envolvido com o Judiciário, ficou sabendo que tinha cinco dias para se apresentar a um juiz. Pior: para começar a cumprir pena de um ano, nove meses e 10 dias por arrombamento de um banco em Santa Catarina.
– Me deu um enjoo no estômago. Nem conseguia ler direito a papelada – recorda Luís André.
O defensor Paulo de Souza buscou informações e soube que uma pessoa – com documento de identidade em nome do seu cliente – fora presa em flagrante por arrombamento em uma agência às 2h30min de 5 de junho de 2007. O ladrão foi denunciado e condenado como Luís André – fruto de uma cadeia de erros que expõe a facilidade em falsificar documentos, o descontrole na polícia e no Judiciário e a dificuldade de comunicação entre órgãos oficiais.
O advogado tratou de arranjar provas de que seu cliente não era o criminoso. Não foi difícil. Na empresa onde o estudante trabalha, a Cegelec (no Polo Petroquímico de Triunfo), o cartão-ponto comprova que, na madrugada do arrombamento, Luís André entrou no emprego às 7h42min. Ele passou o dia na empresa, conforme comprova o mesmo relógio-ponto. Acontece que o banco arrombado fica numa cidade a cerca de 400 quilômetros de Triunfo – o que torna impossível que ele tenha ido até lá, cometido o crime e retornado ao serviço na mesma madrugada.
Estudante aguarda que tribunal anule a prisão
Além disso, o ladrão que se identificou como Luís André foi preso em flagrante e ficou na cadeia de Campo Belo do Sul. Já o verdadeiro Luís André, conforme atestado da Ulbra, na mesma noite do arrombamento frequentou a aula na Faculdade de Engenharia Mecânica.
Os advogados conseguiram mais de 60 pessoas dispostas a testemunhar que Luís André esteve no trabalho e na aula naquele dia, mas isso não evitou que ele fosse preso. Aconteceu em 27 de agosto. O estudante resolveu registrar, na delegacia, ocorrência de que um ladrão está usando seu nome para cometer crimes. O problema é que, ao acessar o banco de dados criminais, o escrivão Lúcio Demari deparou com a informação “indivíduo procurado”. Por via das dúvidas, o policial colocou algemas nos pulsos do homem.
Apavorado, Luís André levou quase meia hora para explicar que tudo não passava de um engano. Só foi solto porque os policiais constataram, também por computador, que ele tinha recebido habeas corpus da Justiça suspendendo o cumprimento da pena. O documento não havia sido comunicado à polícia e, por isso, Luís André ainda continuava sendo, na prática, um foragido. Só deixará esta condição quando o Tribunal de Justiça anular, em definitivo, sua sentença de prisão.
Digitais revelaram verdadeiro criminosoLuís André só conseguiu um habeas corpus que lhe permite circular em liberdade – embora provisoriamente – porque seus advogados descobriram quem é o ladrão que usa seu nome. O defensor Paulo de Souza conseguiu foto do homem preso pelo arrombamento em Campo Belo do Sul. Trata-se de Alessandro Carvalho de Sá, gaúcho com antecedentes por arrombamentos e assaltos.
O curioso é que Luís André não perdeu documentos. É provável que uma quadrilha tenha invadido o banco de dados do governo estadual e imprimido um documento em seu nome – isso, só uma demorada investigação para descobrir.
Como os advogados descobriram a falsificação? O ladrão já havia usado o documento do estudante ao cometer outros crimes. Ele foi preso em Taquara por arrombamento, em fevereiro de 2007. Na Polícia Civil, identificou-se como Luís André. Mas os policiais receberam um telefonema anônimo avisando que ele mentira. Os agentes resolveram checar e, pelo exame de impressões digitais, descobriram que se tratava de Alessandro.
– O resultado é que, além de responder por furto qualificado, agora ele também será julgado por falsidade ideológica (uso de documento falso) – informa a juíza Luciana Barcellos Tegiacchi, que atua em Taquara.
Alessandro ganhou liberdade provisória para responder pelos crimes. ZH tentou localizá-lo no endereço fornecido em um dos processos na Capital, mas não o encontrou.
O usurpador- Ao ser preso em Santa Catarina, Alessandro Carvalho de Sá se identificou como Luís André da Silva Domingues, um homem sem antecedentes criminais. Alessandro tem antecedentes por arrombamentos e assaltos no Estado e em Santa Catarina. Em 2003, foi preso em Florianópolis com uma quadrilha de assaltantes. Em 6 de maio do mesmo ano, fugiu do presídio de Florianópolis, com outros suspeitos. Condenado já duas vezes por arrombamentos, Alessandro responde a processo pelo mesmo crime, além de falsidade ideológica, na comarca de Taquara (RS). Na cidade gaúcha, foi preso em flagrante ao arrombar uma agência bancária em fevereiro de 2007 e apresentou dados de Luís André da Silva Domingues. Desconfiados, policiais pediram a peritos que comparassem as digitais do ladrão com as do verdadeiro Luís André e descobriram que não eram iguais.
Casos assim não são raros, afirma a juízaResponsável pela ordem de prisão contra Luís André, a juíza Adriana da Silva Ribeiro, da Vara de Execuções Criminais (VEC), de Porto Alegre, diz que não havia como saber que o rapaz não cometeu o crime. Ela ressalta que o réu foi condenado e cabe a um magistrado da área de execuções criminais ordenar a prisão daquele que não é encontrado para cumprir a pena.
– Mesmo assim, oportunizei ao Luís André cinco dias para se apresentar, após ser intimado, antes de ser conduzido a um presídio. Avisei ao advogado que, caso não fosse ele mesmo o autor do crime, as provas deveriam ser encaminhadas à Justiça catarinense, que o condenou.
Alertada por Zero Hora, Adriana confirmou a informação de que Luís André tem um habeas corpus que não lhe permite ser preso. Ela diz que o documento demorou a chegar em suas mãos. A magistrada prometeu informar à Polícia Civil para que o nome de Luís seja retirado do sistema de busca de foragidos.
A juíza afirma que casos como esse não são raros. Ela recorda que, em pouco mais de um ano, registrou outro episódio de homem condenado por engano.
– A cada semana tenho de ordenar a identificação de um preso que apresenta mais de um documento. É uma trabalheira saber quem ele é, de fato – desabafa Adriana.
O HOMEM ERRADO - “É um sonho ruim que não acaba”
Perda de sono, de apetite, de estímulo. Essas têm sido as sensações vivenciadas pelo formando em Engenharia Luís André da Silva Domingues desde que foi confundido com um ladrão e condenado, como ele descreve, nessa entrevista concedida a Zero Hora:
Zero Hora – Como estão as coisas, agora que a Justiça começa a reconhecer que o senhor não é ladrão?
Luís André da Silva Domingues – Bem não estão, né...Continuo apreensivo. Continuo condenado em Santa Catarina, vai demorar um tempão para reverem isso. Não saio mais, com medo de ser preso. Aliás, fui preso e não esqueço aquelas algemas nos pulsos. Logo eu, que nunca devi nada...Incrível como no Brasil uma pessoa pode ir parar atrás das grades por um crime que sequer tinha ouvido falar.
ZH – E a rotina no trabalho?
Luís André – Venho trabalhar, mas a cabeça está noutro lugar. Nem fome tenho. É um sonho ruim que não acaba. Deixei tudo de lado: estudo para as provas, concentração no serviço...Parece que caí num buraco. Só vou melhorar quando tiver meu nome retirado no processo. Com todas as provas que apresentei, continuo parecendo que eu não sou eu. O que tu achas de um sujeito usando teu nome por aí? É barra.
ZH – O senhor enfrenta muitas brincadeiras?
Luís André – Bastante, dos colegas. Fazem piadinhas, numa boa. Mas sabem do meu drama, minha tristeza. Recebi telefonemas de conhecidos até de outros Estados, com pena. A informação se espalhou. Sinto vergonha, apesar de muita gente se solidarizar.
CONTRAPONTOSO que diz o juiz André Milani, de Campo Belo do Sul - O juiz diz que só ficou sabendo de um possível engano quanto à identificação de um dos criminosos porque recebeu pedido de informações solicitado pelo Tribunal de Justiça gaúcho, pela suspeita de que um dos condenados usou nome falso. “Em razão dos fatos noticiados, o processo foi remetido para o Ministério Público averiguar os fatos, inclusive acerca de eventual delito de falsa identidade”, pondera Milani. Ele informa ainda que o banco de dados judicial de Santa Catarina não é conectado com o do Rio Grande do Sul, nem com outros Estados. Mesmo assim, é possível aos cidadãos acessar os sites dos tribunais e verificar se a pessoa responde a algum tipo de processo. “Como foi constatado o engano, mas, essa pessoa está condenada formalmente pela Justiça catarinense, seu advogado deverá entrar com um pedido de revisão, anexando as provas que desfaçam o erro”, finaliza o magistrado.
O que diz o delegado de Polícia Civil Rafael Belinatti, da delegacia de Campo Belo do Sul (SC)- Ele diz que o caso aconteceu quando ele ainda não era delegado na cidade e que, se ocorreu engano, é em função de um dos criminosos ter apresentado identidade falsa. “É difícil ir atrás de cada identificação e ver se é verdadeira”, pondera o delegado, que promete verificar o inquérito, para ver o que é possível fazer.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - "O descontrole na polícia e no Judiciário e a dificuldade de comunicação entre órgãos oficiais" provam que não existe um sistema de preservação da ordem pública no Brasil. O que há são instrumentos corporativos que se ligam por processos burocráticos, fazem ações isoladas e cada um cumpre seu papel sem se importar com a eficácia do todo. Mesmo tendo provada a sua inocência, a vítima do Estado continua na presídio aguardando que tribunal anule a prisão. E, o pior, apesar da gravidade, uma juíza afirma com naturalidade que "casos assim não são raros". Num país dito democrático, casos como este deveriam ser tratados como uma afronta aos Direitos Humanos, com a justiça aplicando agindo com celeridade e rigor para sanar o erro e punir os autores da negligência do Estado.
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