MATAR NÃO É UM ATO DE HEROÍSMO
Justiça

MATAR NÃO É UM ATO DE HEROÍSMO



ZERO HORA, 19 de junho de 2012 | N° 17105. ARTIGOS

Jocelaine Teixeira, juíza de Direito

As notícias de que uma idosa de 87 anos baleou e matou um ladrão despertaram aplausos. O indiciamento dela pela Polícia Civil gerou reclamações inflamadas contra os órgãos do Estado e tantas outras manifestações de prestígio à conduta da anciã.

Não pretendo avaliar juridicamente o caso. O que me instiga é o lado humano posto em debate. Imagino o quão mal a idosa sinta-se com o ocorrido e sou solidária a ela. Chocam-me, no entanto, as avaliações de que matar um ladrão é uma bravura. Intrigam-me também as motivações das inflamadas críticas à apuração dos fatos.

Isso porque, no Estado social de direito ou em qualquer comunidade humana, matar alguém pode ser uma atitude de desespero, mas não é um ato heroico, e deve ser apurado. Cabe, pois, ao Estado dispensar ao caso adequado tratamento jurídico, de modo fundamentado, como é próprio das conclusões do inquérito policial, da avaliação do promotor de Justiça e das decisões judiciais.

Retorno, no entanto, aos questionamentos pela visão humanística. A falta de segurança que nos aflige; contudo, o coletivo regozijo com a morte de um ladrão, como se assim estivéssemos reduzindo a violência, pavimentando um futuro melhor para as próximas gerações, ou fazendo uma limpeza dos maus para o triunfo dos bons, a exemplo do que fez Hitler, é tão mais grave e perigoso, é antidemocrático e descivilizado.

O ladrão era uma pessoa (sim, um ser humano) possivelmente privada de acesso à formação sociocultural e de amparo familiar, com vários registros policiais e usuário de crack. É um daqueles que nos faz fechar os vidros dos carros, de quem, todos, inclusive o Estado, se afastou. Digo isso, não por saber quem foi o morto, mas apenas com base na experiência da jurisdição criminal, porque esse é o perfil prevalente dos réus em ações penais e na população carcerária do Estado.

Seria, na minha avaliação, salutar, a partir do desventurado episódio, questionar-se sobre o valor da vida e sobre a importância do acesso à educação de razoável qualidade, à alimentação, a oportunidades de trabalho, à cultura, ao lazer, do desenvolvimento da criança e do adolescente em ambiente familiar permeado pelo afeto, e de o Estado ser capaz (financeiramente e no âmbito de sua gestão) de, em parceria com o setor privado, suprir essas demandas sociais. Ao contrário disso, sobressaltam-se as comemorações da morte de um pobre ladrão, como se matá-lo fosse uma vingança coletiva e quem materializou esse desejo tivesse cometido um ato de heroísmo.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEACom certeza, NÃO DEVERIA SER  um ato de heroísmo se as circunstâncias envolvessem apenas "uma pessoa (sim, um ser humano) possivelmente privada de acesso à formação sociocultural e de amparo familiar, com vários registros policiais e usuário de crack". Ocorre que nada disto é apresentado na ação dos bandidos quando ousam invadir uma residência, abordar um pedestre, surpreender um condutor de carro, tirotear contra a policiais e, ou atacar outras pessoas para tirar patrimônio e a vida se houver reação. É com este ponto de vista que deveria enxergar uma autoridade de justiça para cumprir sua função coativa e aplicar as leis para que a ordem, a justiça e os direitos sejam restabelecidos e respeitados por todos. Portanto, é sim heroísmo defender-se contra a ação de bandidos, mesmo que cause a morte deles, pois o normal é submeter-se a seus desmandos, ilicitudes, constrangimentos, submissão, afrontas, crueldades e execução sumária.



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