Justiça
MÃO DA JUSTIÇA PARA TER DIREITO BÁSICO
ZERO HORA 06 de março de 2013 | N° 17363
SAGA DA SAÚDE
O drama de um bebê que ficou três dias à espera de transferência para unidade para tratar suas queimaduras, resolvido com interferência judicial, expõe mais uma vez a realidade de superlotação em UTIs e centros especializados no Estado.
Três dias depois que a água fervente da caneca em que pretendia preparar café foi derramada e queimou 30% do corpo de seu filho, de um ano e três meses, a dona de casa Aline de Moura Krack, 19 anos, conseguiu enfim a transferência do menino para uma unidade especializada no tratamento de queimados em Porto Alegre, por determinação judicial.
Mais do que um drama pessoal, a peregrinação do paciente de Santa Vitória do Palmar em busca de atendimento expõe o drama da falta de leitos de alta complexidade pelo Sistema Único de Saúde. Como resultado, famílias como a de Diego Welinton de Moura Jardim, têm recorrido à Justiça para garantir o que deveria ser um direito básico.
Celebrada pelos parentes com alívio, a chegada do bebê ao Hospital Cristo Redentor, na manhã de ontem, após transferência de avião do Hospital Universitário de Rio Grande até o aeroporto Salgado Filho, foi precedida de uma agonia conhecida por quem enfrenta longas filas no sistema de saúde. Na primeira tentativa de atendimento, no Hospital Santa Casa de Santa Vitória do Palmar, foram seis horas de espera por um pediatra. Neste intervalo, recebeu um primeiro atendimento clínico.
– O que mais me doeu foi que o doutor falou: “não posso fazer nada por ele”. Tu ali com o filho nos braços, parecia que estava morto, e o pediatra diz que não pode fazer nada? – revolta-se a mãe.
A chegada do especialista, à 1h da madrugada, pouco aliviou o sofrimento, pois a primeira tentativa de contato com a Central de Leitos se revelou vã. A informação era de que não havia vagas em UTIs pediátricas nem em unidades para queimados. Desesperados, parentes e amigos registraram a falta de especialista em ocorrência policial e acionaram o conselho tutelar, que levou o caso à promotoria. Com o esforço, conseguiram, por meio de liminar judicial, a transferência para o Hospital Universitário de Rio Grande. O problema é que esta instituição tampouco estava equipada para tratar do bebê: não dispunha de UTI pediátrica, nem de unidade para queimados. Após nova determinação judicial, o menino acabou transferido para o Hospital Cristo Redentor, na manhã de ontem.
– Agora sim meu filho está onde devia estar. Pra mim ele nasceu de novo. Lá em Santa Vitória pensava que não ia mais ter ele. Ele já está se movimentando, apontando o que quer – comemorou a mãe, que pouco antes do embarque para Porto Alegre viu o filho abrir os olhos pela primeira vez desde o acidente, e ouviu dos médicos do Cristo Redentor que o filho terá de ficar internado por pelo menos três semanas na unidade.
A concentração da rede de alta complexidade nos arredores de Porto Alegre é um dos problemas a serem enfrentados para encurtar a angústia dos pacientes e suas famílias. No caso de UTIs neonatais, por exemplo, 57% das vagas estão na região metropolitana da Capital. O secretário da Saúde, Ciro Simoni, destaca o esforço para descentralizar o número de vagas, mas admite que há percalços no caminho (confira a entrevista na página ao lado).
Enquanto isso, casos como o de Diego estão longe de ser exceção.
– É uma dificuldade diária encontrar leitos – conta a diretora técnica do Hospital Universitário de Rio Grande, Susi Lauz.
JÚLIA OTERO E LETÍCIA DUARTE
ENTREVISTAS
“A família se precipitou” - Ciro Simoni - Secretário Estadual da Saúde
Dizendo ter sido informado do caso do bebê Diego por Zero Hora, o secretário estadual da Saúde, Ciro Simoni, afirmou ontem à tarde que não pode levar a culpa “todas as coisas porque alguém lá na ponta não faz”. Minimizando as falhas do sistema de saúde que administra, responsabilizou a Justiça e a família por decisões equivocadas e precipitadas. Confira a seguir trechos da entrevista:
Zero Hora – Este não é o primeiro caso em que bebês só conseguem ser transferidos para leitos especializados, de UTI ou na ala de queimados, após decisão judicial. Por que isso acontece?
Ciro Simoni – Não precisava, acontece que eles se precipitaram desde o início. Tanto que a primeira decisão judicial foi uma decisão errada, porque mandou para um hospital que não tinha nem UTI pediátrica, nem tratamento para queimados. Se mandassem ao menos para a Santa Casa em Rio Grande, que tem atendimento para queimados, já era outro assunto. Porque essa criança não precisou de UTI nunca, nem está precisando agora. Ela precisava de atendimento para queimados. Nós temos atendimentos para queimados lá em Rio Grande, no Pronto Socorro em Porto Alegre, no Cristo Redentor.
ZH – A culpa é do juiz?
Simoni – Não é do juiz, é que já começou errado. A família se precipitou, entende? Foi no juiz, o juiz já mandou para o hospital universitário de Rio Grande, que não tem nem UTI.
ZH – E por que essa demora em conseguir a transferência para a unidade de queimados? No Cristo Redentor havia vagas disponíveis na unidade de queimados ontem, mas mesmo assim o Estado só realizou a transferência depois da ordem judicial.
Simoni – Eu entrei no circuito quando li a Zero Hora, ontem. E vimos que tinha vaga no Cristo. Às três ou quatro horas da tarde telefonamos para Rio Grande, disseram “ah, então nós vamos mandar”. Agora de manhã (ontem) vimos que o paciente não veio, mas estávamos esperando. Qual a dificuldade? Eu não posso adivinhar. Eu não posso levar a culpa de todas as coisas porque alguém lá na ponta não faz.
ZH – As pessoas acabam recorrendo à Justiça porque o Estado parece que não tem essa agilidade...
Simoni – Mas não é. A médica telefonou para Rio Grande e disseram que não tinha vaga. No sábado de noite não tinha, mas depois se conseguiu. Só que daí já tinha a decisão judicial e não podia transferir.
ZH – O senhor tem dito que o número de leitos está adequado à população, mas 57% dos leitos em UTI neonatal estão concentrados na Região Metropolitana. Isso não é uma distorção?
Simoni – Não fui eu quem fiz isso. Eu estou tentando remediar essa situação. Tanto que nós estamos abrindo 10 leitos em UTI pediátrica em Rio Grande, que só não está funcionando porque não tem pessoal, porque o Ministério Público Federal não deixa que contrate. E já repassei R$ 1 milhão para o Hospital São Francisco de Pelotas para que eles possam se adaptar, para ter 10 neonatal e 10 pediátricas.
ZH – Também são comuns casos de falta de médicos, como na UTI de Canguçu, que acabou fechada no ano passado, por falta de profissionais. As entidades médicas dizem que o problema são os baixos salários, que não atraem os médicos.
Simoni – Ora, ora, não faltam profissionais por causa disso. Podem até em outras áreas, mas em UTI não faltam. O problema é que as pessoas não querem trabalhar em Canguçu. Em Rio Grande tem pessoal, e não podem contratar, é uma questão burocrática. Mas eu peguei essa herança. Nós já ampliamos 70 leitos em UTI no Estado.
“Não raramente a Justiça tem de intervir” - Quelen Van Caneghan - Juíza da Vara da Infância
A juíza Quelen Van Caneghan, titular da Vara da Infância e Juventude da comarca de Santa Vitória do Palmar, foi quem concedeu a liminar para transferência do bebê Diego. Confira abaixo entrevista sobre o tema:
Zero Hora – Foi a senhora quem deu a primeira liminar para entrada da criança no Hospital Universitário de Rio Grande?
Quelen Van Caneghan – Sim. Eu estava de plantão e, por volta, das 2h30min de domingo, chegou até mim o pedido de transferência para o Hospital Universitário (HU) de Rio Grande e eu, imediatamente, aprovei. Mas, mais tarde, ficamos sabendo que a indicação do hospital de Santa Vitória estava equivocada. No HU, não há UTI pediátrica ou para queimados.
ZH – E a senhora sabia disso?
Quelen – Não. O juiz fica limitado a tomar decisão com base no pedido, não tenho como questionar uma prescrição médica, se pressupõe que aquele seria o ideal.
ZH – E haverá alguma investigação a respeito dessa indicação equivocada do hospital de Santa Vitória?
Quelen – Na verdade cabe à família tomar providências, se acha que aquilo prejudicou o bebê. No caso, se tivéssemos a informação correta, poderíamos tê-lo enviado diretamente a Porto Alegre, sem passar por Rio Grande.
ZH – E o pedido complementar da primeira liminar, que ordenava transferir o bebê de Rio Grande para Porto Alegre, também foi a senhora quem concedeu?
Quelen – Sim, foi deferido ontem (segunda-feira) e cumprido hoje (terça-feira).
ZH – A senhora acompanhou outros casos parecidos?
Quelen – Ano passado também houve uma situação de bebê que precisava ser internado em uma UTI pediátrica e os parentes tiveram que entrar na Justiça para garantir a vaga. Não raramente a Justiça tem de intervir para garantir um direito mínimo do cidadão, em razão de burocracias administrativas, de omissão dos gestores da saúde pública e até mesmo negligência nos atendimentos, submetendo a população a uma espera demasiada, que coloca em risco a própria vida e desconsiderando situações legais que impõem prioridades e encaminhamentos, sobretudo tratando-se de menor em estado grave.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Como ocorre com as políticas prisionais, há um descaso generalizado do poder político nas políticas de saúde pública com a conivência dos parlamentos e com a leniência da justiça. Ações superficiais e imediatistas são sempre tomadas pela justiça, sem qualquer força para acabar definitivamente com este descaso e com as negligências das autoridades de Estado que causam sofrimento e morte numa população que paga as taxas de impostos mais elevados do mundo para manter a máquina pública mais cara do planeta. Assim, deve-se apoiar e aplaudir o ativismo judicial exercido neste caso, mesmo que pontual, para obrigar o poder político a adotar soluções para casos particulares. A nossa esperança é esperar pelo dia em que a justiça brasileira declarar sua independência do poder político e começar a exercer seu papel coativo na democracia brasileira, com sistema, agilidade e comprometimento.
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