ZERO HORA 31 de maio de 2013 | N° 17449
SANTA MARIA, 27/01/2013
Ferida reaberta. A decisão da Justiça revoltou pais e amigos dos 242 mortos na boate Kiss e provocou críticas da polícia e do Ministério Público
Depois de quatro meses da tragédia de Santa Maria, familiares e amigos das 242 vítimas do incêndio na boate Kiss acreditavam já ter ultrapassado todos os limites da dor. Com auxílio terapêutico, se esforçavam dia a dia para ressignificar a perda. Por orientação da polícia e do Ministério Público, apostavam em manifestações “pacíficas e ordeiras” para converter o luto em causa coletiva.
Diante da decisão judicial de soltar os quatro principais réus, usando como um dos argumentos a ausência de clamor popular, os parentes agora sentem-se traídos. Arrependem-se dos gritos contidos desde aquele 27 de janeiro, que ontem se traduziram em manifesto por j++ustiça. Com a ferida reaberta, descobrem uma nova dimensão da dor, desta vez convertida em revolta.
Uma das primeiras reações extremadas foi o tapa desferido por uma mãe no rosto de um dos defensores dos donos da boate, o advogado Jader Marques, na saída do julgamento, na quarta-feira (leia texto ao lado). Apesar de ter prevalecido o entendimento na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de que a prisão cautelar não seria mais necessária a esta altura do processo, os familiares também se sentiram esbofeteados pela decisão dos desembargadores. Um dos trechos da decisão assinala:
“A verdade é que, passados quatro meses desde o infausto, já não se fazem mais presentes os aspectos da ordem pública ressaltados pelo magistrado no decreto prisional: o clamor público e a necessidade de resguardar-se a credibilidade da Justiça”.
– Nós fizemos o que a polícia, o Ministério Público, o juiz e os defensores públicos nos pediram: “Adherbal, segura a população que nós vamos revelar e dizer coisas que vão afetar e desagradar muita gente”. Nós cumprimos nosso dever de casa, fizemos tudo o que nos pediram e levamos um belo puxão de tapete. No caso da Eliza Samudio (ex-amante do goleiro Bruno), era apenas uma vítima e havia comoção. Os suspeitos foram presos preventivamente porque havia comoção. Então, com 242 vítimas não há comoção? – desabafou o presidente da Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia, Adherbal Ferreira.
Revoltados, familiares prometem subir o tom. Durante protesto na Praça Saldanha Marinho, ontem, membros da associação formaram um círculo e mostraram cartazes, pintaram o nariz de vermelho. Expressaram sentimentos com gritos em um megafone.
– A Justiça quer ouvir os gritos? Eles vão ouvir os gritos! – disse a dona de casa Marise Oliveira, 49 anos, que perdeu um filho no incêndio.
Testemunha do esforço diário dos envolvidos para ressignificar a dor, a psicóloga Melissa Haigert Couto, diretora do departamento de voluntariado da Cruz Vermelha, observa que o processo de elaboração do luto regrediu.
– Eles estão revivendo a morte dos filhos com a mesma dor daquele dia, é como se a vida dos filhos não valesse. E a dor vem aumentada, porque vem junto com a revolta – observou.
Aumenta procura por psicólogos
Questionado sobre a decisão dos desembargadores, o prefeito Cezar Schirmer preferiu não se manifestar. Preocupados com a comoção pública, psicólogos do serviço de Acolhimento 24 horas, ligado à prefeitura, se reuniram ontem à tarde para discutir novas estratégias de atendimento à população.
– Sentimos que aumentou a procura por auxílio e estamos em prontidão. Esse fato nos assinala que o trauma está longe do fim – analisou o psicanalista Volnei Dassoler, do comitê gestor.
*Colaborou Patric Silva
LETÍCIA DUARTE*
“Agi com meu instinto de mãe”Não faria isso racionalmente (agredir o advogado Jader Marques), mas estou sob grande estresse. Esse Jader (Marques) parece que atua num circo, está sempre debochando, ironizando. Na saída da sessão que concedeu liberdade para os quatro estávamos sob choque, nós, familiares. Aí ele passa ao lado dos parentes das vítimas, depois de passar toda a sessão sorrindo. Não consegui aguentar. Se o Jader tivesse respeito, deixaria a gente sair antes. Agi com meu instinto de mãe. Ele que processe, vou me defender (o advogado anunciou que processará Carina). Estou à base de remédio, não durmo direito, sob tratamento psiquiátrico. Minha filha fazia Filosofia na Unifra, uma rica duma guria...Morreu asfixiada, na noite do incêndio. Quem aguenta isso? Não me conformo em ver quatro bandidos serem soltos. Os juízes não poderiam fazer isso.
*Mãe de Thanise Correa Garcia (uma das 242 vítimas do incêndio), Carina Correa deu um tapa no rosto do advogado Jader Marques, que defende um dos sócios da boate Kiss.CARINA CORREA*
Acusados silenciamA notícia da libertação pegou de surpresa familiares dos quatro réus que, até a noite de quarta-feira, eram mantidos presos após o incêndio na boate Kiss.
Nas primeiras horas da manhã de ontem, Zero Hora esteve na casa de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira. Ele chegou em casa, em Santa Maria, às 22h de quarta-feira. Ficou conversando com os familiares (os pais moram no mesmo terreno) até a madrugada.
– Abraçou-se à família como se estivesse voltando de uma longa viagem – descreveu Márcio, um dos irmãos de Marcelo, destacado para conversar com jornalistas.
Por orientação do seu advogado, Omar Obregon, Marcelo não falou com Zero Hora. Nas primeiras horas da tarde, o vocalista foi transferido para a casa de um parente.
Ontem, o produtor de palco Luciano Bonilha Leão passou o dia em casa e, à noite, recebeu a visita do advogado, Gilberto Weber. Na noite de quarta-feira, Luciano foi recebido pela mulher, amigos mais íntimos e familiares em seu apartamento. Mauro Hoffmann, sócio da Kiss, passou o dia com a família. Elissandro Spohr, o Kiko, um dos proprietários da danceteria, deve aguardar a cesariana de sua mulher marcada para os próximos dias, em Porto Alegre.
CARLOS WAGNER | SANTA MARIA
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Devemos sim criticar esta (in)justiça criminal morosa e condescendente que temos no Brasil, mas não podemos esquecer que as decisões judiciais são amparadas por leis elaboradas no Congresso Nacional pelos representantes políticos que escolhemos e votamos nas eleições. Estes "representantes" podem muito bem endurecer as leis e elaborar a reforma da justiça criando um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil e coativo e compromissado com as questões de ordem pública que trata da vida, da saúde, do patrimônio e do bem-estar da população.
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