COMPLEXO DE MACGYVER E OS MODELOS DE JUÍZ
Justiça

COMPLEXO DE MACGYVER E OS MODELOS DE JUÍZ


CONSULTOR JURÍDICO, 02 DE NOVEMBRO DE 2013

DIÁRIO DE CLASSE
episódio 1

Por Rafael Tomaz de Oliveira e Alexandre Morais da Rosa




No último dia 31 de outubro, esteve na Escola de Direito da Unisinos em Porto Alegre, o jurista belga François Ost. Falou sobre o tema “Vigiar, punir, perdoar. Direito e variações literárias”. A pretexto desse tempo que permaneceu entre nós, Ost nos fez lembrar de um texto escrito por ele ainda na década de 1990 e que teve grande influência no campo da Teoria do Direito. Trata-se de artigo intitulado Júpiter, Hércules e Hermes: os três modelos de juízes, cuja tradução para a língua espanhola encontra-se disponível na internet.[1]

O argumento desenvolvido por Ost é bastante conhecido: não há um único modelo capaz de descrever toda a complexidade que envolve a função do magistrado na contemporaneidade. Seja pelos aspectos operacionais, com os quais o juiz está envolvido na lida cotidiana da profissão, seja pela pluralidade de teorias disponíveis para retratar o fenômeno jurídico no nosso contexto atual. Todavia, Ost perfila a tese de que, se não é possível falar em um único modelo de juiz para o tempo hodierno, seria possível, por outro lado, buscar uma aproximação do problema a partir de três figuras — que funcionariam como arquétipos — representativas das possibilidades de enquadramento da atividade judicante no quadro contemporâneo. Essas três figuras, ou arquétipos, seriam: Júpiter, Hércules e Hermes.

É importante considerar que a posição de Ost não pode ser considerada, simplesmente, como uma descrição comportamental das atividades do magistrado que, a partir da percepção de alguns padrões de conduta, poderiam ser enquadradas nas características de cada uma das figuras mencionadas.

Na verdade, o que Ost nos revela através de seu texto são algumas das possibilidades interpretativas que podemos observar no âmbito jurídico ao longo do século XX. A questão, portanto, tem profundos vínculos com a hermenêutica jurídica. Assim, os “modelos de juízes” a que se faz referência poderiam muito bem ser mencionados como “modelos de intérpretes”, na medida em que qualquer jurista, envolvido com o problema interpretativo que atravessa todo o fenômeno jurídico, poderia apresentar as características apontadas como determinantes para cada um dos modelos de juízes apresentados pelo autor. O fato de se falar especificamente na figura do juiz — e não do intérprete — obedece a um critério metodológico: de algum modo, é na atividade decisional do juiz que todos os fios que envolvem o problema interpretativo do direito se encontram. Daí que, com Dworkin, poderíamos dizer que o âmbito da decisão judicial possui uma espécie de “privilégio metodológico” quando queremos tecer considerações teóricas sobre a interpretação jurídica.

Nesse sentido, o juiz Júpiter seria aquele que desempenha a sua atividade interpretativa tendo como pressuposto a crença absoluta na teoria do ordenamento jurídico, cuja origem remonta a Kelsen e a sua Teoria Pura do Direito. Assim, para o juiz Júpiter, as normas estariam postas numa cadeia hierárquica e estratificada no interior do ordenamento jurídico, de modo que uma Constituição escrita determinaria a atividade do legislador, ao passo que a atividade do legislador estabeleceria os marcos definidores da ação interpretativa do juiz. Nesse contexto, “o juiz Júpiter só poderia se movimentar no espaço semântico a ele permitido pela norma jurídica superior”. O modelo jupiteriano, diz Ost, é o modelo de direito baseado nos códigos de leis emitidos pelos órgãos com autoridade legislativa.

Já o juiz Hércules seria o arquétipo que reuniria em torno de si os elementos que caracterizam a postura interpretativa observada nas propostas mais extremas do chamado realismo jurídico. Nesse contexto, o juiz seria responsável, concomitantemente, pela decisão do caso concreto litigioso e pela criação da norma jurídica que seria a ele aplicado. Assim, não haveria para o juiz Hércules um compromisso em descobrir o direito que as partes tinham no momento de instalação do conflito. Pelo contrário, o juiz Hércules criaria a regra no momento da decisão do caso e a aplicaria, retroativamente, ao momento originário da demanda. Nesse momento, segundo o autor, não há direito antes da decisão e, assim, o Código é substituído pelo dossiê.

Aqui é preciso abrir parênteses: o próprio Ost reconhece que a descrição que ele efetua do juiz Hércules é diferente daquela que ficou célebre com Ronald Dworkin. Neste último caso, a jurisdição de Hércules representaria uma jurisdição com responsabilidade política. Todavia, é preciso ainda afirmar — indo além da ressalva posta por Ost — que para Dworkin o juiz Hércules representa aquele que, a partir de um dedicado trabalho (quase sobre-humano) de análise do Direito da comunidade política, descobre o direito que as partes efetivamente têm (Hércules é o juiz que leva os direitos a sério), e não aquele que cria Direito e o aplica retroativamente ao caso. Vale dizer, o juiz Hércules de Dworkin é antirrealista e, ao mesmo tempo, antijupiteriano.

Por fim, Ost constrói o arquétipo do juiz Hermes. Para ele, este seria o modelo adequado ao chamado Direito pós-moderno (o que isso significa, ninguém sabe dizer). Tal qual a figura do semideus grego — que fazia a mediação entre os deuses e os mortais, traduzindo a linguagem divina em humana e vice-versa — o juiz Hermes é aquele que consegue operar e dialogar com todos os códigos e valores que configuram o horizonte da pós-modernidade. Num tempo de extrema fragmentação, Hermes seria um juiz que se adapta ao fragmentarismo. “Não conhece outra lei que não a da circulação dos discursos, a partir da qual arbitra os jogos, sempre recomeçados”.

Nossa intenção, aqui, não é polemizar com o artigo de Ost. A impertinência hermenêutica da tese já foi analisada nos trabalhos de Lenio Streck que faz um decálogo para mostrar como a análise de Ost é insuficiente para compreender os desdobramentos dos diversos positivismos e de sua superação por um modelo pós-positivista de Teoria do Direito.[2] Na verdade, considerando as práticas jurídicas de há muito vigentes no Brasil, nenhum desses modelos seria capaz de reunir as características predominantes na atividade do jurista/juiz brasileiro.

Daí que se faz necessário criar um novo modelo/arquétipo que seja adequado ao senso comum teórico dos juristas tupiniquins.

Trata-se de um modelo que podemos enunciar como Complexo MacGyver, a saber: o conjunto de ideias e emoções, inclusive inconscientes, que presidem o modo de operar do jurista brasileiro.

Talvez muitos não se recordem (e outros nunca ouviram falar, mas para isso há o YouTube) o arquétipo MacGyver vem de uma série veiculada pela TV brasileira entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990. A série tinha como personagem principal o próprio MacGyver, uma agente secreto que podia fazer coisas impronunciáveis utilizando apenas um canivete suíço. Entre suas façanhas, incluía-se o desarme de bombas e o escapismo, inacreditável, das situações de aprisionamento e encurralamento das mais expressivas que o gênio humano é capaz de criar. MacGyver sempre deixava a audiência boquiaberta como que a se perguntar: “ah vá, como é que ele fez isso?!”

O modelo de juiz MacGyver pode se apresentar de diversas maneiras. Ele é sincrético quanto aos métodos e relativista quanto ao resultado. MacGyver não está preocupado com a coerência. Na jurisdição de MacGyver reina o pan-principiologismo (Streck). Com seu canivete suíço multiuso de princípios, constrói argumentos jurídicos que convenham para possibilitar o desarme de encruzilhadas jurídicas sérias.

Os exemplos são muitos. Cabe apontar, especialmente no Processo Penal, que diante da ferramenta de seu canivete de “princípios”, a proporcionalidade/razoabilidade desponta como principal. A partir da proporcionalidade estoura os limites semânticos dos textos de normas jurídicas, fazendo prevalecer seu decisionismo. A luta será sempre ingrata, uma vez que a história institucional do Direito da comunidade política é sobrestada em nome da eficiência do resultado.

Uma das principais utilidades — no interior da “swiss-army-knife jurisdition” — é o ativismo judicial. Sem maiores inventários teóricos acerca das experiências estadunidenses que revelaram a existência do fenômeno, acredita-se que o ativismo é a forma adequada de realização dos direitos das minorias. Confunde-se os critérios: contramajoritarismo se transmuta em majoritarismo; concretização de direitos se degenera em voluntarismo decisional. Como bem afirma Clarissa Tassinari, o ativismo é o resultado de um desejo ou ato de vontade do órgão judicante de modificar, solipsisticamente, a realidade social circundante.[3]

MacGyver não leu Alexy mas adora falar de colisão de princípios e de sua solução através da fórmula da ponderação. Nunca se sabe em qual momento da decisão as etapas formais de justificação racional do discurso propostas por Alexy foram cumpridas e demonstradas. Mas a justificação de autoridade está lá, como que a desarmar a “bomba relógio” que tornava complexa a solução do caso.

Enfim, ativismo ou ponderação, são coisas que se faz com jeitinhos. Por certo que essas questões são frutos das chamadas “recepções equivocadas” realizadas pelo direito brasileiro, como bem denuncia Lenio Streck.[4] Sem falar que, para muitos, continua vigente a velha máxima de que de urna, barriga de mulher e cabeça de juiz não se sabe o que pode sair. Como bem desmitificou André Karam Trindade neste mesmo Diário de Classe (leia a coluna A ecografia da decisão e o fim das surpresas no Direito), de barriga de mulher se sabe o sexo, de urna se antecipa o resultado, logo, da decisão, precisa-se saber também (o que dela virá). Não pode ser um Kinder Ovo. Uma surpresa. Mas, na jurisdição de MacGyver, sempre somos surpreendidos...

Voltaremos com exemplos nos próximos episódios (sim, porque, como na série de TV, o complexo de MacGyver merece um número sequenciado de episódios). Neste primeiro, pode-se apontar a manutenção da distinção da nulidade absoluta e relativa. Fruto da compreensão ultrapassada (e civilista) da teoria do processo, aponta para que o acusado mostre a “ausência de prejuízo”, prova sempre diabólica. Além do mais, como diz Aury Lopes Jr, qual o prejuízo maior do que se ver condenado sem respeito às regras do jogo processual? Portanto, valendo-se de seu canivete, na ânsia de tornar eficiente seu provimento, salva o processo e a condenação, ao preço da boa-fé. No seriado a coisa girava entre o fantástico e o inacreditável. No Processo Penal também!

No caso brasileiro, o complexo de MacGyver encontra, ainda, o “jeitinho”, uma outra utilidade do canivete suíço, que sempre se apresenta como um forma maquiada de solver um problema sem que ele seja efetivamente resolvido, no mais lídimo sintoma do complexo: o efeito semblante: a fundamentação é a aparência do que poderia ser uma decisão, vazia de fundamentos, cheia de ementas... Iremos, assim, nas próximas colunas, mostrando os usos e abusos do nosso arquétipo, com o maior respeito aos juristas, claro. Talvez se incomodem e digam: “mas eu não sofro do complexo de MacGyver!”. Se precisou dizer... nunca se sabe. Boa semana.


[1] A tradução mencionada no texto foi publicada em 1993 na revista Doxa, número 14.
[2] Cf. Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 381 e segs. A posição apresentada pelo autor na obra citada também repercutiu em alemão (Cf. Abbau der Richtermodelle: Die rechtliche Hermeneutik und die Überwindung des Subjekt-Objekt-Schemas. ARSP. Archiv fur Rechts- und Sozialphilosophie, v. 98, p. 317-331, 2012.), em inglês (Cf. Deconstructing the Models of Judges: Legal Hermeneutics and Beyond the Subject-Object Paradigm. Nevada Law Journal, v. 10, p. 683-699, 2010.) e em espanhol (Cf. La expansión de la hermenéutica filosófica en el Derecho. Doxa, Alicante, v. 1, p. 18-32, 2012.).
[3] Cf. Tassinari, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 147, b.
[4] Cf. Streck, Lenio. Verdade e Consenso. op., cit., p. 47 e segs.



Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2013



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