CIDADANIA PARA OS SEM-PÁTRIA
Justiça

CIDADANIA PARA OS SEM-PÁTRIA


REVISTA ISTO É N° Edição: 2336 | 29.Ago.14


Governo pretende facilitar a concessão do direito de ser brasileiro aos apátridas, pessoas sem nacionalidade reconhecida, que chegam ao País fugindo de guerras e perseguições

Fabíola Perez 



A sensação é de não existir em lugar nenhum e habitar uma espécie de limbo jurídico. Pessoas apátridas não possuem nacionalidade do país onde vivem, tampouco do lugar onde nasceram. Por não terem certidão de nascimento, não conseguem provar sua origem, obter documentos nem ter acesso a direitos básicos, como educação e saúde. Atualmente, existem 12 milhões de apátridas no mundo, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU). São indivíduos que, fugindo de guerras e perseguições, decidem até atravessar continentes, arriscando-se em viagens clandestinas, em busca de um novo país que lhes conceda identidade e abrigo. O caminho jurídico para ser reconhecido como apátrida, porém, costuma ser longo e repleto de entraves.


ACOLHIDO NO BRASIL
O veterinário iraquiano Ahmed Said não foi registrado ao nascer porque
seus pais eram sírios, o que dificultava a obtenção do documento

O Brasil pretende facilitar o calvário dessas pessoas. O Ministério da Justiça acaba de preparar um texto de projeto de lei a ser enviado em breve para o Congresso Nacional que estabelece direitos e prevê obrigações para os sem-pátria. O documento, elaborado em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), prevê a concessão da cidadania brasileira a pessoas sem nacionalidade. “Eles chegam sem falar a língua local, sem conhecer ninguém e sem ter para onde voltar”, diz André Ramirez, representante do Acnur. “Será uma proteção jurídica a essa população, que poderá aumentar nos próximos anos.”

A história de Andrimana Buyoya Habizimana, 34 anos, um dos poucos apátridas reconhecidos pelo Brasil, onde vivem cerca de 100 pessoas sem nação, mostra como é possível recomeçar quando há acolhimento do País. Abin, como é conhecido, nasceu no Burundi, na África, de onde partiu com os pais, aos 10 anos, fugindo da guerra civil rumo à Tanzânia. Ainda adolescente, perdeu toda a família. No fim de 2006, decidiu embarcar clandestinamente em um navio cargueiro em Cabo Verde. Sem saber, desembarcou no porto de Santos (SP). Como tinha o sonho de viver na Europa, tentou embarcar com um passaporte falso em um voo de Natal (RN) para Portugal, mas no aeroporto de Lisboa foi deportado para a capital potiguar, onde ficou preso durante oito meses.


VIDA NOVA
O africano Andrimana atravessou continentes para fugir da guerra,
obteve o registro de apátrida e reconstruiu a vida em Natal (RN)

Começou, então, sua batalha jurídica para ser reconhecido como apátrida. Abin diz que nunca chegou a ser registrado. “Vivia sob perseguição, por isso nunca fui atrás de tirar nacionalidade”, diz. O governo do Burundi negou que ele fosse um cidadão daquele país. “Isso ocorreu em função do genocídio na cidade de Bujumbura, onde muitos documentos foram queimados”, afirma Marcos Guerra, advogado dele. Somente em 2010, a Justiça brasileira reconheceu o direito de Abin viver no Brasil como apátrida. Há dois anos, ele estuda e trabalha como auxiliar em um hospital de Natal. “Posso ter perdido minha família na África, mas ganhei amigos no Brasil e hoje vivo tranquilo”, conta.

Nos últimos anos o número de pessoas sem nacionalidade aumentou muito em razão dos conflitos armados em diferentes regiões. Segundo a ONU, a apatridia está concentrada no Sudeste Asiático, Ásia Central, Leste Europeu, Oriente Médio e África. Entre os motivos que tornam uma pessoa apátrida está o desmembramento de países, a burocracia nas leis que algumas nações adotam para conceder a identidade ou o não registro de uma criança ao nascer. O veterinário Ahmed ali Haj Said, 30 anos, tornou-se apátrida depois de viver sob a ditadura de Saddam Hussein no Iraque e enfrentar restrições na legislação do país. Filho de pais sírios, Ahmed nasceu em 1984 no Iraque. “Perdi meus direitos de ter uma certidão de nascimento por ser filho de sírios”, diz ele. “Todos têm raiva de estrangeiros.” Com um passaporte falso, mudou-se para o Iêmen e depois para a Líbia. De lá, conseguiu viajar para o Brasil em 2009. “Queria vir para a América Latina para fazer uma pós-graduação e viver com segurança”, conta. Após oito meses aguardando a decisão da Justiça, Ahmed conseguiu obter o registro de refugiado apátrida e vive hoje em Guaíra (SP). “Meu sonho agora é conseguir tirar a nacionalidade brasileira.” Com a iniciativa do governo, ele poderá realizá-lo em breve







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