Os promotores Marcio Friggi e Fernando Pereira de Souza, que atuaram no caso do Massacre do Carandiru Mauricio Camargo / Brazil Photo Press
SÃO PAULO - Condenados na madrugada de domingo a 156 anos de prisão pela morte de 13 dos 111 detentos durante a invasão da Casa de Detenção do Carandiru, em outubro de 1992, os 23 policiais militares responsáveis pelos crimes poderão recorrer em liberdade e não têm prazo para ir para a cadeia. Outros três foram absolvidos no julgamento por não estarem na cena do confronto.
A decisão foi apertada, e os jurados se dividiram sobre a conduta dos militares — quatro deles votaram pelas condenações e três foram contra —, o que abre espaço para a defesa dos réus questionar a sentença em recursos em instâncias superiores.
Logo depois de proferidas as sentenças, ainda na madrugada de ontem, a advogada Ieda Ribeiro de Souza anunciou que irá recorrer. Para Ieda, a condenação por apenas um voto não reflete a vontade da sociedade brasileira. Em 2006, outro recurso conseguiu absolver, no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da invasão, que cinco anos antes fora condenado pelo tribunal do júri.
— É um despropósito jurídico, esse é o cunho político do julgamento — criticou a advogada.
Não é como pensa o promotor Fernando Pereira da Silva, que defendeu as punições, consideradas por ele “adequadas” e baseadas “num estudo bastante aprofundado do processo”. Márcio Friggi, também promotor integrante da acusação, classificou os 23 condenados como “maus policiais” de uma “instituição gloriosa”, a Polícia Militar.
A divisão dos jurados e a permanência dos condenados em liberdade levaram especialistas e defensores de direitos humanos a questionarem o efeito prático da decisão, o que pode reforçar o sentimento de impunidade na sociedade. Eles também lamentaram a não responsabilização de autoridades da época pelo massacre.
Para o diretor-adjunto da ONG Conectas, Marcos Fuchs, a decisão foi “dura, mas sem eficácia”.
— Os policiais vão responder em liberdade, e não acredito que serão presos. O júri pode ser anulado, e eles podem recorrer às instâncias superiores. Só para chegar ao Supremo, esse caso levará dez anos — afirmou o diretor da ONG, responsável por levar aos tribunais internacionais os casos de violação de direitos humanos em prisões.
Mesmo descrente do cumprimento da pena, Fuchs ponderou que a condenação serve de lição para a sociedade e para a PM, por mitigar a sensação de impunidade. Para ele, o caso, que demorou 20 anos para ser julgado, expõe a morosidade da apuração.
— As apurações têm de ser muito mais rápidas, e os laudos precisam ter mais qualidade. O trabalho da perícia foi muito dificultado nesse caso, e isso não pode ocorrer — disse.
Professor da FGV Direito Rio, Thiago Bottino alertou que, se o recurso de defesa provocar a anulação do julgamento, a demora para um novo júri poderá levar à prescrição dos crimes.
O criminalista Augusto Arruda Botelho Neto, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), lembrou que casos como o da invasão do Carandiru, em que os réus podem aguardar os recursos e a apelação em liberdade, não são, em tese, prioritários nas instâncias superiores:
— Os réus responderão ao processo em liberdade e, por isso, poderão aguardar a apelação em liberdade. A prioridade sempre é dada aos casos em que os réus estejam presos. Não conheço casos que tenham sido julgados em menos de um ano — diz o criminalista.
Mesmo sendo alvo de recursos em instâncias superiores, a decisão do júri deverá nortear o futuro julgamento dos outros envolvidos no caso, segundo advogados e juristas ouvidos pelo GLOBO.
Outros 53 policiais que participaram da invasão do pavilhão 9, em 1992, deverão ir a júri ainda este ano, respondendo pela morte de 79 presos que foram assassinados nos outros três pavimentos daquela unidade.
— Se o promotor for prudente como foi nesse primeiro caso, tem grande chance de ganhar os novos júris. — disse o jurista Luiz Flavio Gomes, que demonstrou surpresa com a sentença, por achar que há setores da sociedade que apoiam esse tipo de extermínio. — Os jurados deram uma mensagem de que não concordam com a frase que diz “bandido bom é bandido morto”.
Um recado da sociedadeMesma surpresa teve o criminalista Celso Vilardi, para quem a tendência dos júris populares é inocentar policiais acusados de matar detentos ou pessoas supostamente envolvidas com crimes. Vilardi apontou ainda que, apesar da condenação, a falta de comprovação de individualização das responsabilidades de cada um dos réus poderá ser um argumento usado pela defesa na tentativa de reverter o resultado.
— Suspeito da dificuldade de, depois de tantos anos, se conseguir comprovar a individualização da conduta de cada réu — afirmou.
O juiz José Henrique Rodrigues Torres, da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), discorda, e acredita que a decisão do júri representa um recado mais amplo ao Estado:
— Não se trata apenas de uma condenação específica desses policiais, mas de uma condenação ao Estado, de uma política repressiva de segurança pública e de encarceramento. A criminalização individual pode ser importante, mas mais importante é o julgamento da política de Estado, o mais importante é saber o que farão a respeito — disse ele.
A Anistia Internacional divulgou nota em que classifica a condenação como “um importante passo no enfrentamento à impunidade que costuma vigorar diante de graves violações de direitos humanos” e um sinal de que “a Justiça não irá admitir abusos cometidos pelo Estado contra a população carcerária”.