Justiça
A FARRA DO SEMIABERTO
Presos do regime semiaberto curtem a vida ao invés de trabalhar. O Fantástico seguiu o passo de 28 presos do semiaberto. Flagramos 20 na boa vida. Todos devem voltar para o regime fechado. Fantástico, Globo, 05/12/2010
Presos aplicam golpes quando cumprem uma parte da pena. Eles recorrem ao benefício do regime semiaberto alegando que vão trabalhar. Mas, na verdade, saem da cadeia para passear. É o que mostra a reportagem especial do Fantástico.
Homens foram condenados por crimes graves, como tráfico de drogas, assaltos e até assassinatos. Cumpriram parte da pena na cadeia e, agora, foram beneficiados pela lei e podem passar períodos fora da prisão, desde que seja para trabalhar.
Bem nos horários em que esses condenados deveriam estar trabalhando, nós flagramos eles na praia, passeando de carro e indo às compras. Alguns mais ousados aproveitam até para sair do país.
Durante um mês, o Fantástico seguiu cada passo de vários presos do chamado regime semiaberto, uma investigação jornalística que passou por três estados de três regiões brasileiras: São Paulo, no Sudeste; Mato Grosso do Sul, no Centro-Oeste; e Maranhão, no Nordeste. Encontramos vítimas de presos que deveriam estar trabalhando, mas aproveitaram o tempo para praticar crimes. “Com a arma o tempo todo apontada na minha cabeça, ele dizia: ‘não grita, não grita porque eu te mato’”, conta a comerciante Dalva Diniz.
O preso Kilson Conceição Caiscais Silva deveria trabalhar todos os dias em uma Câmara de Vereadores, só que, ali, ninguém o conhece.
Às 6h, começa mais um dia de liberdade para os presos de duas penitenciárias de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul: o Centro Penal da Gameleira e o Presídio Semiaberto Urbano.
O grupo do Centro Penal tem contrato com a prefeitura. Os presos recebem dinheiro público, cerca de R$ 17 mil ao todo, para cuidar da limpeza da cidade. Eles não suspeitam da gravação, porque os vidros do nosso carro são escuros.
Os presos do semiaberto deveriam trabalhar na avenida, limpando e cortando a grama, mas muitos não ficam no local e vão para outros cantos. E são esses flagrantes que nós registramos. Eles se dividem em grupos e conversam muito. Alguns usam o telefone. Muitos dão risada e conversam com mulheres.
De repente, começa a debandada. Um dos presos que vão embora é Eleandro Silva de Souza, condenado a cinco anos e quatro meses por assalto a mão armada. Na ficha criminal dele, consta uma fuga que durou nove meses. Flagramos quando Eleandro vai a um posto de gasolina e escapa do trabalho na garupa de uma moto.
Encontramos outro preso no ponto de ônibus. Alexsandro Bezerra de Oliveira é condenado a três anos e seis meses por tráfico de drogas. Sem se identificar, nosso produtor puxa conversa.
O preso pega o ônibus e vai em direção a um terminal de passageiros. A viagem dura meia hora. No terminal, ele entra em outro ônibus, com destino a um bairro da periferia. Nossa equipe seguiu Alexsandro Oliveira nos dias 16 e 17 de novembro e 02 de dezembro. Nas três datas, ele fugiu do trabalho.
Na quinta-feira passada, encontramos um grupo que também não queria saber de limpar as ruas de Campo Grande. O repórter Maurício Ferraz aborda os presos e pergunta se eles não vão trabalhar. Dois presos saem correndo. Um deles é Alexsandro Oliveira, condenado por tráfico.
Mas ninguém vistoria se os presos trabalham mesmo ou se só vão passear? Teoricamente, existe fiscalização. E o encarregado é o fiscal Oscar William, da prefeitura de Campo Grande.
Repórter: Como vocês controlam os presos, sendo que eles vão embora e não ficam aqui?
Fiscal: Quem falou isso?
Repórter: Nós filmamos vários indo embora. Tem preso que pegou ônibus do outro lado.
Fiscal: Eu não vi e desconheço isso.
“Eles saem para a rua e não têm uma fiscalização por parte do estado. A fiscalização não existe. Presos que aparentemente deveriam estar cumprindo pena estão cometendo outros crimes. Isso é notório no nosso estado”, aponta o presidente do Sindicato do servidor penitenciário de Mato Grosso do Sul, Fernando Anunciação.
O preso consegue passar do regime fechado para o semiaberto, se não tiver cometido falta grave na cadeia. Também deve ter cumprido, no mínimo, um sexto da pena, em caso de crime comum.
Por exemplo, um ladrão condenado a cinco anos pode ir para o semiaberto depois de dez meses. Quem comete crime hediondo, fica mais tempo em regime fechado: o equivalente a pelo menos dois quintos da pena. Um sequestrador condenado a dez anos tem direito ao semiaberto depois de quatro anos.
“A lei prevê que ele deve ter alguma atividade, ou trabalho ou estudo. Em alguns casos, ambos. Ele vai buscar um empregador. Esse empregador vai atestar que ele está trabalhando em determinado período e ele se recolhe ao estabelecimento prisional, durante a noite”, explica o juiz Luciano Losekan, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Conferimos também como se comportam os presos do Semiaberto Urbano de Campo Grande. Poucos vão embora a pé. A maioria tem motos e carros. Um deles é Tamiro Mota da Silva, condenado a 11 anos e seis meses por tráfico de drogas.
Para poder sair da cadeia, ele declarou que é atendente em um bar, na periferia de Campo Grande. Em três dias de gravações, Tamiro não deu as caras no trabalho. Sem saber que estava sendo gravada, a dona do comércio confirma. “Ele não trabalha mais aqui comigo, desde o ano passado”, declara.
No horário em que deveria estar trabalhando, Tamiro passeia pela cidade, circula por bairros afastados, visita amigos e leva uma mulher para fazer compras.
Fomos ao estacionamento de um supermercado, seguindo o preso que deveria estar trabalhando. Mas ele está numa boa. Trabalhar que é bom mesmo, nada. Depois, encontramos Tamiro e um colega, em uma casa na zona rural de Campo Grande.
Na quarta-feira passada, tentamos falar com Tamiro quando ele voltava pra cadeia.
Repórter: A gente está fazendo uma reportagem sobre o semiaberto dos presos que não trabalham, entre eles, você. Você não trabalha.
Tamiro: Eu não trabalho?
Repórter: A gente foi no seu emprego. Faz um ano que você não aparece lá.
Tamiro: Eu não. Acho que você está enganado.
Repórter: A gente mostrou. Você não trabalha.
Tamiro: Não. Acho que você está enganado.
Repórter: O que você faz então?
Tamiro: Acho que você está enganado.
Em busca de outros flagrantes, fomos para Ponta Porã, ainda em Mato Grosso do Sul. Às 6h, saem às ruas os presos da única cadeia de regime semiaberto da cidade.
O semiaberto de Ponta Porã fica a menos de 100 metros do Paraguai. Vários presos vão para o Paraguai de carro e de moto. Eles só poderiam sair do Brasil com autorização judicial, mas nenhum deles tem. Segundo agentes penitenciários, alguns detentos trabalham para traficantes paraguaios.
“Vamos fazer uma auditoria em todos os contratos para verificar a responsabilidade da fiscalização dos contratos. Aqueles presos que estiverem cometendo irregularidades, que não estiverem trabalhando ou que estiverem cometendo crimes serão responsabilizados por isso”, afirma o secretário de Justiça e Segurança do Mato Grosso do Sul, Wantuir Jacini.
Segundo o Ministério da Justiça, há no Brasil cerca de 440 mil presos. Desse total, 72 mil têm direito ao semiaberto. “São anos de omissão, falta de investimento e não se recupera ninguém. Pelo contrario, é um sistema que hoje está produzindo mais criminalidade”, destaca o juiz Luciano Losekan, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
São Paulo concentra o maior número de presos do semiaberto: são mais de 20 mil. Quatro mil podem sair da cadeia para trabalhar.
Em Mongaguá, litoral sul do estado, três presos pegam um ônibus e descem em Santos, a 35 quilômetros de distância. Flagramos a boa vida do grupo. Eles fazem caminhada, entram na água e, depois, tomam banho de chuveirinho.
Isaac Rodrigues é condenado a 14 anos e 11 meses por assassinato. Francisco Sotero, a 12 anos e seis meses, também por assassinato. Elias Cavalcante Júnior, a 3 anos e 10 meses por furto e roubo. Só depois de quase uma hora de diversão, eles seguem para o trabalho, em um hospital de Santos.
Por telefone, o diretor do Presídio de Mongaguá informou que os presos são obrigados a ir direto para o serviço e classificou o fato como absurdo.
Em Guarulhos, na Grande São Paulo, flagramos mais desrespeito à lei. Nelson da Silva Santos é condenado a uma pena muito alta: 22 anos e quatro meses por roubos. Em 2004, foi para o semiaberto e cometeu mais três crimes.
Agora, ele deveria estar no regime fechado, mas entrou com um recurso no Tribunal de Justiça e foi de novo para o semiaberto. Nelson pode sair da cadeia para trabalhar em uma quitanda, na Zona Leste da capital paulista. O dono é irmão do preso.
Produtor: Hoje ele não apareceu ainda?
Irmão do preso: Hoje, não.
Por telefone, o preso diz que está perto do centro da cidade, a cerca de 20 quilômetros do serviço. “Dou o braço a torcer. Eu estou errado de não estar no local. Mas não estou indo na maloqueragem. Também não estou nos corre que muitos fazem por aí”, diz Nelson.
Corre, na gíria dos bandidos, significa crime.
Nove dias depois, voltamos à quitanda e, mais uma vez, nem sinal de Nelson no trabalho. “Vai voltar para o fechadinho. Quem sabe, um dia ele aprende a cumprir o que ele promete”, diz o promotor.
Quem comanda o flagrante é o promotor de Justiça Marcelo Oliveira.
Promotor: O senhor sabe que atestar falsamente a presença de um detento...
Irmão do preso: É estelionato.
Promotor: Não é estelionato. É falsidade ideológica. Dá cadeia.
Quem comete falsidade ideológica pode ficar cinco anos na cadeia.
“O empregador deve informar qualquer falta, qualquer atraso do preso. Que parente que vai atestar que o preso, em vez de estar trabalhando, está na rua fazendo não se sabe o quê? Eu cheguei a ouvir uma mãe aqui no Ministério Público que disse que o preso lavava o quintal dela? O filho lavando o quintal da mãe não é trabalho que ressocialize. Isso é baderna. É farra”, aponta o promotor de Justiça Marcelo Oliveira.
Segundo o ministério público, há denúncias de que funcionários da cadeia onde está preso Nelson da Silva Santos receberiam propina para não fiscalizar os detentos do semiaberto.
Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informa que está investigando o caso. Diz também que pediu à Justiça que os presos flagrados nessa reportagem percam o direito de sair da cadeia.
Vamos agora para o Nordeste. No Maranhão, também flagramos muita coisa errada. Entre os flagrantes, estava Rafael Silva Pereira, condenado a cinco anos e seis meses por roubo. De ônibus, ele vai para um bairro afastado. Nem chega perto do suposto emprego. Ele diz que trabalha com a mãe vendendo frango.
Falamos com a irmã do preso. “Ele saiu com a minha mãe. Ele está no centro. Ele foi comprar galinha no centro”, diz.
O comércio fica perto da casa da família. Mas está com a porta fechada e sem nenhuma galinha. Nossa equipe esteve dois dias no local e não encontrou Rafael. À noite, ele voltou para cadeia.
“Não vale a pena abandonar o semiaberto, só se ele for bobo. Porque ele fica solto, durante praticamente o dia inteiro. Ele vai só dormir, ele faz o que ele quer”, diz o promotor de Justiça Marcelo Oliveira.
Em São Luis, o Fantástico teve acesso à lista completa dos presos que deveriam trabalhar. Ao todo, 116 presos vão para as ruas da capital maranhaense.
Wilame David dos Santos Costa é condenado a dois anos e seis meses por tráfico. Ficamos a meio metro de distância dele. O preso anda meia hora de ônibus até chegar ao bairro onde mora. Segundo a polícia, o local é um conhecido ponto de venda de drogas. Por questão de segurança, não ficamos no bairro. Mas Wilame deveria estar do outro lado da cidade, em um mercado, trabalhando.
Repórter: O que ele faz?
Dona do mercado: Ele ajuda, como é que se diz, no abastecimento das coisas.
Repórter: Ele vem sempre?
Dona do mercado: Vem.
Repórter: Você tem a fichinha de frequência dele?
Dona do mercado: Eu não tenho ainda, porque eu ainda estou um pouco desorganizada, ainda não comprei aquele caderno.
Voltamos dois dias depois. E de novo, nada do preso.
Repórter: O Wilame veio trabalhar hoje?
Dona do mercado: Wilame?
Repórter: É.
Dona do mercado: Ele deu uma saidinha.
Fomos aos supostos locais de trabalho de outros presos. Raimundo José Galvão, condenado a sete anos por tráfico de drogas, deveria estar em um mercado.
Dono do mercado: Eu fiz o documento para ele, e ele veio só um dia. Depois, ele não veio mais.
Produtor: Já faz quanto tempo que ele não aparece?
Dono do mercado: Mais de um mês.
Também estivemos dois dias em um depósito de bebidas e não encontramos Welington Sanches Feitosa, condenado a seis anos por roubo. Registramos quando Welington saiu da cadeia, pegou um ônibus e foi pra periferia de São Luís. Andou mais de meia hora até entrar em uma casa.
Em São José de Ribamar, vizinha da capital maranhense, mais uma surpresa. Flagramos Kilson Conceição Caiscais Silva, condenado a seis anos e seis meses por atentado violento ao pudor, um crime sexual.
Ele pode sair da cadeia, porque, supostamente, trabalha como auxiliar de gabinete da Câmara Municipal. Mas, no local, Kilson é um ilustre desconhecido. “Nunca vi (Kilson) trabalhando aqui. Não é funcionário da Câmara”, afirma o presidente da Câmara Municipal de São José de Ribamar, Beto das Vilas. O presidente da Câmara prometeu tomar providências.
“Não há fiscalização. Ao todo, 30% e 40% dessas pessoas que saem para trabalhar não vão para o trabalho, vão para outro local, cometer outro tipo de crime”, aponta o presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do Maranhão, Cézar Bombeiro.
“É uma sensação terrível ficar na mira de uma arma e ser chamada de vagabunda e tudo quanto é nome baixo”, revela a comerciante Dalva Ribeiro Diniz que foi vítima de Rodolfo Ribamar Costa Neves, condenado a 12 anos e três meses por roubo e furto.
Quando assaltou Dalva, ele era preso do semiaberto. Para conseguir o benefício, declarou que trabalhava com parentes na organização de festas infantis. Mas, no horário do suposto serviço, assaltou dois mercados. “Ele parou o carro e, simplesmente, mostrou a arma para mim. Ele mandou abrir o caixa, e eu abri o caixa. Eles levaram o dinheiro”, conta a atendente Denise Carvalho da Silva.
“O que precisa é realmente uma fiscalização mais intensiva e mais atuante para que esses desvios não voltem a acontecer. Nós fazemos a fiscalização, mas de maneira muito pouco efetiva. Digamos que nós temos 50% de controle sobre esses presos. Os outros 50% nós efetivamente não temos”, aponta o secretário de Segurança do Maranhão, Aluísio Mendes.
Todos os presos do semiaberto vão ter direito de passar o natal e o ano novo com a família.
Nesse período, em São Paulo, a previsão é que cerca de cinco mil detentos saiam da cadeia carregando uma novidade: tornozeleiras. O equipamento, usado pela primeira vez no estado, indica onde o preso está. Se for retirado do corpo, a polícia é avisada.
Segundo o Ministério da Justiça, nos próximos meses, um decreto vai regulamentar o uso do monitoramento eletrônico em todo o Brasil. “É necessário que o estado comece a mudar, não só fiscalizando através de tornozeleiras eletrônicas, mas contratando pessoal qualificado. Sem esse trabalho, o Brasil não vai sair dessa situação carcerária em que se encontra”, destaca o juiz Luciano Losekan, do CNJ.
Nessa reportagem, o Fantástico acompanhou bem de perto a rotina de 28 presos. Flagramos 20 na boa vida, bem longe do trabalho. A lei não deixa dúvida: todos têm que ser punidos. Eles devem voltar para o regime fechado, sem direito de sair da cadeia por um bom tempo.
“Ele tem que ser fiscalizado com rigor, para ele trabalhar e se reinserir na sociedade. Sem fiscalização, em vez de ressocializar, a gente está incentivando que eles voltem e cometam mais crimes”, afirma o promotor Marcelo Oliveira.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Nos Estados Unidos e Países da Europa existem departamentos com agentes do estado e terceirizados incumbidos da tarefa de monitorar os presos com benefícios penais. Aqui no Brasil este controle é feito pelo empregador, pelo familiar, pelo próprio preso e até pelo advogado que conseguiu um "favor" para o apenado. Há acordos de "confiança" com a justiça que não atenta para as táticas mafiosas que podem ser utilizadas para manter uma "lei do silêncio". A EXECUÇÃO PENAL no Brasil é amadora onde os Poderes envolvidos fazem que fiscalizam e que exigem um do outro o cumprimento das atribuições e responsabilidades. Mas a realidade mostra uma conivência gera negligência e esta a impunidade que promove a desordem que estimula o crime e a violência no Brasil.
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