Justiça
UMA LEI PARA ILUMINAR O PODER PÚBLICO
Concebida para alcançar um grau inédito de transparência no país, a Lei Geral de Acesso à Informação surge com um desafio: romper a cultura do sigilo reinante na administração pública brasileira. Ao obrigar União, Estados e municípios a divulgarem todos seus atos e despesas, as novas regras podem se tornar o mais eficaz mecanismo de combate à corrupção.FABIANO COSTA E FÁBIO SCHAFFNER | BRASÍLIA, zero hora 27/11/2011
A partir de abril, quando a legislação entra em vigor, qualquer cidadão poderá solicitar a informação que bem entender a um ente público. Salvo documentos que comprometem a segurança do Estado ou revelam informações de caráter pessoal, o acesso terá de ser preferencialmente imediato – no máximo disponibilizado em 30 dias. Os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, além de estatais e ONGs financiadas com recursos públicos, serão obrigados a expor seus dados na internet.
Das vantagens e auxílios concedidos a dirigentes aos motivos que justificam a elevação do custo de uma obra – artimanha corriqueira para falcatruas –, tudo terá de ser aberto ao escrutínio da sociedade.
A ambição de descortinar o manto de segredos que encobre a máquina pública, contudo, esbarra na escassa tradição de transparência de um Brasil no qual o Senado edita 663 atos secretos para nomeação de apadrinhados e o Judiciário omite muitas vezes o nome de magistrados investigados por corrupção ou incompetência.
– Nosso nível de transparência é sofrível. Haverá muita resistência à lei – diz o presidente da OAB, Ophir Cavalcante.
O país avançou nas últimas duas décadas, a ponto de especialistas estrangeiros surpreenderem-se com o fato de que aqui é possível descobrir quanto a Presidência gastou no dia anterior. Porém, prefeituras, governos, Assembleias, Câmaras, sobretudo estatais e o Judiciário, são refratários à cultura da transparência. Diante do estigma nacional das leis que não pegam, a eficácia da norma vai depender do engajamento da população.
– Temos de repetir o sucesso do Código de Defesa do Consumidor, que hoje é respeitado graças às cobranças dos cidadãos – diz Fernando Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.
Na história, há casos emblemáticos de como o comportamento de autoridades pode mudar os rumos de uma nação. Nos EUA, Richard Nixon teve de renunciar em 1974 após a descoberta de fitas gravadas pela Casa Branca nas quais ele admitia ter conhecimento da invasão de escritórios da oposição por partidários vinculados ao serviço secreto. No Brasil, a reunião que culminou na edição do AI-5, o mais arbitrário ato do regime militar, foi registrada em áudio e está disponível na internet. Desde a restauração da democracia, contudo, não há registro público de nenhuma reunião ministerial.
Apesar dos obstáculos, o surgimento de entidades dedicadas à fiscalização da máquina estatal contribui para disseminar a cultura do livre acesso à informação. Diretor da ONG Contas Abertas, o economista Gil Castello Branco tem pelo menos 20 pedidos prontos para serem disparados tão logo a lei entre em vigor.
– O controle da sociedade tem de ser cada vez mais ampliado – prega Castello Branco.
Entenda as novas regrasObjetivosA lei visa a facilitar o acesso à informações e ampliar o controle social sobre o setor público. Torna a publicidade a regra e o sigilo, a exceção. As normas entram em vigor em seis meses, estipulando prazos para entrega de dados e punições aos servidores que negarem acesso sem justificativa.
Como funcionaTodos os órgãos públicos terão de publicar informações na internet sobre sua atuação, gestão e disponibilidade orçamentária. Brasileiros, sem exceção, poderão consultar documentos. A disponibilidade deve ser imediata. Se isso não for possível, há um prazo de 20 dias, prorrogável por mais 10. Caso o acesso seja negado, deve ser justificado, e cada órgão terá de criar uma instância para que o cidadão possa recorrer.
Como procederÉ dever dos órgãos e entidades promover a divulgação em local de fácil acesso de informações por eles produzidas ou custodiadas. Também será assegurada a criação de locais específicos para atender e orientar o público. Independentemente disso, qualquer cidadão poderá requerer informações, sem necessidade de apresentação de motivos.
“Não podemos deixar que a lei caia no vazio”. Vânia Vieira, Diretora de Prevenção da Corrupção da CGUDiretora de Prevenção da Corrupção da Controladoria-Geral da União (CGU), Vânia Vieira aposta na nova lei, mas está convencida de que será árduo o esforço para mudar a cultura de sigilo do funcionalismo público. A seguir, a síntese da entrevista:
ZH – Como mudar a cultura de sigilo do Estado brasileiro?
Vânia Vieira – O maior desafio é a barreira cultural. Uma pesquisa da CGU na administração federal revelou o pensamento dos servidores em torno do acesso à informação. No estudo, diagnosticamos que os funcionários dizem ser a favor da abertura dos dados de governo, no entanto, quando são questionados sobre situações concretas demonstram resistências. Muitos afirmam ter receio de entregar informações sem pedir autorização ao chefe e sem consultar o departamento jurídico. Mudar essa cultura demanda investimentos em ações de conscientização e capacitação.
ZH – O prazo de seis meses é suficiente para implementar a regra em todo o país?
Vânia – Não. É praticamente inviável. Na Inglaterra, a tolerância para colocar a lei de acesso em prática foi de cinco anos. O Executivo federal está em uma situação confortável, na medida em que já cumpre o rol de obrigações mínimas de transparência. Por outro lado, Estados, municípios e os poderes Judiciário e Legislativo terão muito trabalho.
ZH – Quais são os desafios para universalizar o acesso às informações públicas?
Vânia – O primeiro deles é a própria estruturação do sistema. A lei prevê que todos os órgãos e entidades deverão implantar os Sistemas de Informação ao Cidadão (SIC), uma unidade física para receber os pedidos de acesso e prestar orientações. Também é preciso aprimorar a gestão de informação dos órgãos no que se refere a registro e arquivamento de documentos. Não temos a tradição de registrar e tratar essas informações.
ZH – Quanto custará para tirar a lei do papel?
Vânia – Não temos estimativas, mas podemos adiantar que são volumes substanciais. Nos EUA, as agências federais gastam cerca de US$ 380 milhões (R$ 684 milhões) para processar e responder anualmente mais de 4 milhões de pedidos de informações. No Reino Unido, o custo anual de administração do sistema de acesso é de 35 milhões de libras esterlinas (R$ 97,4 milhões).
ZH – Quem fiscalizará se os órgãos estão prestando as informações de maneira adequada?
Vânia – No Executivo federal, a CGU atuará como instância recursal nos casos de descumprimento da lei. Para outros poderes, Estados e municípios, a legislação ainda terá de ser regulamentada.
ZH – Há punições para servidor ou órgão que descumprir as regras?
Vânia – Para ambos. A lei é bastante rigorosa. As sanções aos servidores, por exemplo, variam de advertência, multa e até demissão.
ZH – A divulgação de informações pode contribuir para diminuir a corrupção?
Vânia – Acreditamos que a transparência é um dos melhores antídotos contra a corrupção. Nos últimos anos, com o avanço da divulgação de informações do governo federal, percebemos a diminuição de falhas e irregularidades.
ZH – Como estimular o cidadão a fiscalizar o poder público?
Vânia – Esse é um dos pilares do sistema de acesso. Não podemos deixar que a lei caia no vazio. Em alguns países, como a África do Sul, a sociedade não fez uso do direito de acesso. Para que isso não ocorra aqui, o Estado e as organizações da sociedade civil precisam implementar ações de estímulo aos cidadãos. A sociedade precisa se apropriar dessas informações públicas.
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