SOCIEDADE MILITAR. Seg, 09 de Junho de 2014
SAULO DE TARSO MANRIQUEZ
Reflexões sobre o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014
Gramsci propunha um Estado integral ou ampliado, no qual a distinção entre Estado e sociedade civil tornar-se-ia imperceptível.
Se o PT fracassar nas eleições, o partido não mais conduzirá o Estado ampliado, mas subsistirá, no governo de qualquer partido, por meio da sociedade ampliada que o partido mesmo criou.
O Decreto nº 8.243, de 23 de maio deste ano, que cria a “Política Nacional de Participação Social” e o “Sistema Nacional de Participação Social” tem por finalidades: 1) manter o PT, indiretamente, como protagonista dentro do governo federal (no caso de uma eventual derrota do partido nas urnas); 2) corroer a democracia representativa; 3) enfraquecer o Congresso; 4) acelerar a criação de uma nova Constituição.
Como Vivian Freitas, em artigo intitulado“O risco de golpe: o decreto n.º 8.243/2014 e o plebiscito constituinte”, já abordou a relação entre o decreto em tela e o desejo do PT em criar uma nova Constituição, o presente artigo não versará sobre esse aspecto.
1. Quem serão os participantes na Política Nacional de Participação e no Social Sistema Nacional de Participação Social?
O art. 1º do Decreto nº 8.243/2014 institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) estabelecendo o objetivo de “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”. E o art. 4º, I, estabelece, dentre outros objetivos da PNPS, o de “consolidar a participação social como método de governo”. Em princípio não há nada de muito estranho nisso, pois existem outras normas vigentes no Brasil que valorizam a participação social no âmbito da Administração Pública (v.g. artigos 32 e 33 da Lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999 e art. 2º, art. 4º, III, “f”, e § 1o do art. 32 da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001). Ocorre, no entanto, que ao contrário do que acontece com outras normas que enfatizam a participação, colocando-a como uma possibilidade ou como ferramenta de planejamento a ser ou não concretizada pelos administradores públicos, o Decreto nº 8.243 enfatiza a promoção da participação como um dever da Administração Pública Federal e, logo, acaba transformando a participação social em um “direito”[1]. O art. 3º do referido decreto concebe a participação como um direito e o art. 5º do mesmo decreto diz que “os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”, ou seja, o decreto amarra a atuação do governo federal à participação dos movimentos sociais, coletivos e ONGs, colocando-os como juízes do agir estatal.
O art. 2º, I, do Decreto nº 8.243 diz que a sociedade civil abrange “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. Para compreender o alcance das pretensões desse decreto é preciso refletir sobre o que se entende usualmente por “movimentos sociais”, “coletivos” e sobre a temática da participação.
Há quem diga, como é o caso de Maria da Glória Gohn, que os movimentos sociais abrangem atores coletivos de diferentes classes e com interesses distintos[2], entretanto, convém lembrar que além da noção de movimento social estar historicamente relacionada com movimentos que lutam por transformações sociais[3] – amiúde mediante expedientes revolucionários -, o conceito corrente de movimentos sociais está muito longe da leitura que Gohn faz dos mesmos. A noção contemporânea de movimentos sociais não é pluralista, pois exclui grupos que procuram influenciar os governos de forma desalinhada da agenda socialista. Assim, para todos os efeitos, as associações de empresários, os grupos pró-vida, as associações religiosas cristãs não progressistas, as organizações que lutam contra o desarmamento civil, entre outras, não são considerados “movimentos sociais”. Nada que cause espécie, haja vista que a atual conceituação de movimento social é um upgrade do conceito de classes marxista[4]. Se em Marx existia uma classe opressora e outra oprimida, para a new left existem - dentro do vasto portfólio dos maniqueísmos que produzem - de um lado as forças “antidemocráticas”, “antipopulares” e “fascistas” e de outro os “movimentos sociais”.
Os coletivos, por sua vez, seguem a mesma lógica. Em verdade, pode-se afirmar que são desdobramentos ou nósdentro da rede dos movimentos sociais. Não existem “coletivos” fora da esfera de influência das esquerdas.
Os movimentos sociais e os coletivos, portanto, são aqueles que as forças de esquerda classificam como tal.
Embora o decreto coloque o cidadão dentro do conceito de “sociedade civil”, a “participação” se dará por meio dos movimentos sociais e coletivos.
Lembra Paulo Bonavides que “o homem do Estado moderno é homem apenas acessoriamente político”[5]. Esse homem não é como o homem dos tempos da democracia ateniense, que podia, na medida em que lastreado por uma economia escravocrata, dedicar-se quase que integralmente às discussões políticas realizadas na Ágora. Nas sociedades modernas, os homens são em sua grande maioria indivíduos que lutam ou para transcender a linha das necessidades básicas da vida ou para garantir um mínimo de bem-estar para suas famílias. Destarte, a política divide espaço com inúmeras atribuições e reflexões do cotidiano, vindo a ser para muitos o último lugar na escala de prioridades.
Diga-se também que a participação requer tempo e são poucas as pessoas que realmente dele dispõem.
Os regimes totalitários caracterizam-se, dentre outras coisas, pela pretensão de colocar a política no centro da vida das pessoas. Não se quer dizer com isso que os totalitarismos estão abertos a uma espécie de controle “social”, “popular” ou “cidadão”, e nem se está aqui sugerindo que tais regimes são “participativos”; longe disso. Os Estados totalitários requerem uma aparência de cidadania total. Norberto Bobbio, ao analisar a democracia direta grega e o modelo rousseauniano de democracia, observou que “o cidadão total e o estado total são as duas faces da mesma moeda”, tendo em comum o princípio de que “tudo é política”, o que implica “a redução de todos os interesses humanos aos interesses da pólis, a politização integral do homem, a resolução do homem no cidadão, a completa eliminação da esfera privada na esfera pública [...]”.[6]
As pessoas comuns, que veem na política um assunto secundário, que empreendem, que trabalham, que estudam e que, por essas razões, às vezes não têm tempo ou disposição para sequer participar de uma reunião de condomínio, serão alijadas do suposto processo participativo sugerido pelo decreto em comento. Na verdade, não é para elas que o decreto se volta. O decreto alcança um público específico: os cidadãos totais, os cidadãos compedigree devidamente certificado pelo partido hegemônico ou por alguma força de esquerda. O decreto destina-se, enfim, a pessoas e organizações propositadamente preparadas para lhe dar efetividade e “legitimidade”. Quem participará, portanto, são os movimentos sociais, os coletivos e os grupos dotados de uma organização capaz de mobilizar e capacitar interessados para uma atuação concreta e decisiva nas mais diversas esferas do governo federal.
2. Construindo uma identificação artificial entre sociedade civil, movimentos sociais, coletivos e ONGs
O Decreto nº 8.243 acabará por criar uma identificação artificial entre a sociedade civil e os movimentos sociais, os coletivos e as ONGs. Destarte, quando movimentos sociais e coletivos, institucionalizados ou não, participarem na formulação, na execução, no monitoramento e na avaliação de programas e políticas públicas do governo federal entender-se-á que foi a sociedade civil que participou.
A sociedade civil - ou simplesmente a sociedade - é “a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais”[7]̄[8]. O conceito de sociedade civil não é o mesmo de movimento social ou de coletivo. Movimentos sociais e coletivos fazem parte da sociedade civil, mas não a representam em sua totalidade e complexidade.
As democracias contemporâneas convivem com novas realidades que desafiam governos e estrategistas políticos. Identificam-se nas sociedades, além dos habituais poderes mais ou menos institucionalizados, uma sociedade de organizações – privadas, governamentais e não governamentais. As organizações, lembra Richard Hall, “são um componente predominante na sociedade contemporânea”[9]. Charles Perrow, em seu artigo A society of organizations chegou a dizer que as organizações “absorveram a sociedade”[10]. De certa forma, as organizações dão voz aos diversos segmentos da sociedade, mas pode ser perigoso enfatizar isso, pois se acaba por favorecer as perspectivas que têm por escopo forjar uma equivalência entre alguns movimentos ou grupos com a totalidade da sociedade.
Convém destacar que a proliferação de organizações não governamentais não é necessariamente fruto de expressões espontâneas da sociedade. Nessa proliferação há também a presença de uma estratégia política de ideólogos de esquerda que se volta para a conquista ou reconquista da hegemonia socialista. Nesse sentido é interessante lembrar que Jürgen Habermas, verificando que após o colapso da União Soviética os socialistas ficaram, por assim dizer, “órfãos”, recomendou ao movimento socialista – que no Estado soviético tinha uma feição estatal - que se distribuísse e se canalizasse em organizações sociais[11].
Pode-se dizer que Habermas pega carona no pensamento de Antonio Gramsci. Gramsci propunha um Estado integral ou ampliado, no qual a distinção entre Estado e sociedade civil tornar-se-ia imperceptível. O Estado ampliado é aquele que não se limita às suas próprias instituições e órgãos, pois nele “a sociedade civil, por intermédio das organizações privadas de hegemonia (a expressão será trabalhada logo adiante), indica a ‘direção’ política e cultural, e passa a executar certas funções públicas que antes pertenciam exclusivamente à esfera estatal”[12].
Gramsci cunhou a expressão aparelhos privados de hegemonia para designar as instituições da sociedade civil voltadas a estabelecer uma visão de mundo hegemônica sobre as outras visões mediante a ocupação de espaços[13]. Apesar de o conceito de aparelho privado de hegemonia poder, em princípio, ser aplicado a organizações que representam diferentes correntes ideológicas, seu uso está umbilicalmente atrelado aos discursos e projetos socialistas orientados para a conquista da hegemonia.
Quando Gramsci fala em aparelhos privados ele está, em princípio, pensando especificamente em cooptar o empresariado, os proprietários, enfim, a "classe dominante", com vistas a atrelar a sociedade civil ao Estado. Com o tempo, aparelhos de outras configurações, ou seja, não necessariamente "privados" no sentido preciso do termo, foram sendo inseridos na dinâmica da luta pela hegemonia. O termo "privado" aproximou-se cada vez mais da ideia de não-estatal. Dizer "privado" não quer mais necessariamente dizer "empresarial" ou algo relacionado com a classe que Gramsci considerava dominante. O crescimento vertiginoso das ONGs e o fortalecimento dos movimentos sociais trouxeram novos subsídios para uma teorização estratégica sobre os aparelhos de hegemonia.
Gramsci trabalha estrategicamente com o conceito genérico de “sociedade civil” (ou “sociedade civil organizada”), camuflando por meio dele a orientação para ação (que pode ou não se restringir ao campo do discurso) direcionada a movimentos específicos comprometidos com a imposição da hegemonia socialista.
Os movimentos sociais, os coletivos e as ONGs são aparelhos privados de hegemonia a serviço da ampliação do Estado; da “identidade-distinção” entre a “sociedade civil” e a sociedade política (Estado)[14].
3. A corrosão da democracia representativa e o enfraquecimento do Congresso
O Decreto nº 8.243 tende, reitere-se, a forjar uma identificação entre a sociedade civil e os movimentos sociais, coletivos e ONGs. O corolário dessa identificação artificial será a ressignificação das noções de representação política e de legitimidade democrática. Quando os movimentos sociais, os coletivos e as ONGs participarem das decisões do governo federal, propalar-se-á a ficção de que quem está participando é a própria sociedade civil. E mais: sugerir-se-á que a sociedade fora representada.
O Decreto nº 8.243 prepara o terreno para o fim da legitimação democrática delineada na Constituição de 1988, a qual só se dá pelas vias eleitorais que definem os representantes e pelas vias plebiscitária e referendária (acessórias e sujeitas a uma série de limitações constitucionais) nas quais toda a população de um município, de um Estado-membro ou de toda a nação, é chamada a se manifestar sobre algum assunto. A representação e a legitimidade democrática serão divididas entre os movimentos sociais, os coletivos, as ONGs e o Congresso.
4. Mantendo o protagonismo a qualquer custo
No caso de o PT ser derrotado nas urnas, o Decreto nº 8.243/2014 garantirá ao partido a permanência nas estruturas do Estado por meio das organizações e movimentos a ele atrelados.
É preciso compreender que o Decreto nº 8.243/2014 é fruto de uma longa trajetória de consolidação da hegemonia socialista.
Durante todo o tempo em que esteve no comando do Estado, o PT empenhou-se em ampliá-lo, criando e fortalecendo seus aparelhos de conquista da hegemonia: os movimentos sociais, os coletivos e as ONGs.
As forças políticas que conduzem o Estado ampliado procuram justificá-lo e legitimá-lo por meio do expediente retórico que sugere que quem na verdade se amplia é a sociedade. Diz-se então que é a sociedade ampliada(movimentos sociais, coletivos e ONGs) que controla o Estado e não o contrário[15].
Se o PT fracassar nas eleições, o partido não mais conduzirá o Estado ampliado, mas subsistirá, no governo de qualquer partido, por meio da sociedade ampliada que o partido mesmo criou.
O Decreto nº 8.243/2014 rateia preventivamente a condução do governo federal entre o PT e qualquer outro grupo político que venha a assumir o poder. Não obstante, o decreto permitirá ao PT obstar e prejudicar a atuação de outro partido que eventualmente assuma o governo federal.
ESCRITO POR SAULO DE TARSO MANRIQUEZ | 06 JUNHO 2014
Em Mídia sem Máscara.
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