Justiça
O JULGAMENTO
O ESTADO DE SÃO PAULO, 03 de julho de 2012 | 3h 02 ALMIR PAZZIANOTTO PINTO ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHODivulgado o cronograma de julgamento da Ação Penal 12-MG, ajuizada pelo procurador-geral da República contra 40 réus, no processo mundialmente conhecido como "mensalão", resta a nós, cidadãos despidos de privilégios, aguardar pelos resultados, na expectativa de sentença a ser conhecida no final de agosto.
Antes, porém, creio ser recomendável lembrar que a causa tramita em foro privilegiado e entender o que isso significa.
A regra democrática de igualdade de todos perante a lei (cláusula da Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948) está incorporada às nossas Constituições republicanas desde a primeira delas, de 1891. Não poderia contê-la a Carta Imperial de 1824, pois ali era permitida a exploração de trabalho escravo. A existência de foro privilegiado não deixa, portanto, de caracterizar transgressão ao conceito republicano de paridade. Privilégio, segundo os dicionários, deriva do latim privilegium, ou privus + lex, lei colocada a favor de alguém onde seria justo haver tratamento isonômico.
Já na Constituição de 1891, competia ao Supremo Tribunal Federal (STF) processar e julgar, originária e privativamente, o presidente da República e ministros de Estado, nos crimes comuns; e ministros diplomáticos, nos comuns e de responsabilidade (Artigo 59). Preliminarmente, entretanto, se submeteriam a veredicto político do Senado, que poderia puni-los com a perda do cargo e incapacitá-los para o exercício de outro, "sem prejuízo da ação da justiça ordinária, contra o condenado" (Artigo 53).
Guardadas as diferenças, continua a ser assim. Aumentou, todavia, o número dos beneficiados por foro especial. No rol do Artigo 102 da Constituição de 1988, estão relacionados, para infrações penais comuns, além do presidente e dos ministros, o vice-presidente, membros do Congresso Nacional, os próprios integrantes do Supremo e o procurador-geral da República; e em casos considerados infrações penais comuns e crimes de responsabilidade, ministros de Estado, comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União e chefes de missões diplomáticas de caráter permanente. No processo crime do "mensalão", além de medalhões políticos já cassados, temos a presença de banqueiros, bancários, empresários, publicitários, militantes partidários e cabos eleitorais.
O julgamento em foro privilegiado oferece duas faces: uma, positiva, pois o Supremo é integrado por ministros que, segundo reconhecimento do Senado, têm notável saber jurídico, reputação ilibada, além de plena independência, eis que atingiram o topo da carreira, e nada mais têm a aspirar além de posição destacada na História.
O juiz de primeira instância é alguém aprovado em concurso público, mas isso não lhe basta para conferir os atributos dos grandes magistrados. Tem longo caminho a percorrer na acidentada carreira e um processo como o do "mensalão" pode - embora não deva - lhe trazer algum constrangimento. De toda forma, no caso de sentença equivocada, haverá instância superior destinada a corrigi-la.
Ao lado positivo do foro especial se oferece um lado negativo: decisão do Supremo Tribunal Federal não comporta recurso. É via estreita e de mão única. Por mais que se lhe critiquem, nasce com o atributo de caso julgado. Se houver condenação, será irrecorrível, e o mesmo ocorrerá na hipótese de injusta absolvição.
Para quem julga, contudo, inexiste o lado bom. No foro privilegiado, o ministro não tem o direito de errar, embora, por vezes, cometa pecados irreparáveis. Está presente, na memória das pessoas de bem, o ocorrido no caso Cesare Battisti. Condenado pela Justiça da Itália à prisão perpétua por assaltos a mão armada, triplo assassinato e por tornar inválido o filho de uma das vítimas, foi absolvido por via oblíqua, e atualmente goza a vida flanando em companhia daqueles que o admiram.
As dificuldades dos ministros tornam-se maiores, pois decidem, em geral por maioria, após se envolver na defesa de argumentos conflitantes. Além do relator e do revisor, nove outros ministros têm o direito de concordar, ou de divergir, no todo ou em parte. Sabendo que a ação criminal do "mensalão" envolve 40 denunciados, com seus respectivos advogados, é fácil avaliar os obstáculos a ser transpostos para que haja sentença na data prevista. Bastará um dos ministros pedir vista.
A morosidade que entorpece o caso do "mensalão" tem, como um dos vetores, a prolixidade da Constituição, responsável pela ampliação das competências do Supremo, sobrecarregando-o com processos que deveriam ter findado nos Tribunais de Justiça dos Estados ou em tribunais superiores.
Lembremo-nos de que, com o propósito de quebrar a espinha dorsal do Supremo, o regime militar, mediante Ato Institucional, ampliou o número de ministros de 11 para 16. A experiência durou pouco, pois trouxe maus resultados, e levou o governo a retroceder. A solução consiste, obviamente, na redução da carga de trabalho, conforme já propunha Carlos Maximiliano no livro Comentários à Constituição Brasileira, editado em 1918. Assinalou o jurista: "À semelhança do que sucedeu com os Estados Unidos e a Argentina, acha-se o Brasil em face de um problema cuja solução se impõe - aliviar a Corte do excesso de trabalho, do qual não dá conta".
O "mensalão" deve ser olhado como um divisor de águas. Do resultado que a Ação Criminal vier a colher, mediante votação unânime ou por maioria, a Nação poderá vislumbrar o futuro. Saberá se prevalecerão os valores advindos do trabalho e da honestidade ou se os louros da vitória pertencerão a picaretas, aventureiros e arrivistas.
A quem se encontra na planície, nada resta a fazer, senão acreditar na isenção do Supremo e aguardar a condenação dos culpados.
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