MONICA DE BOLLE. Diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das GarçasUma das diretoras da Casa das Garças, centro identificado com ideias neoliberais, Monica de Bolle está traduzindo para o português o livro de Piketty, que chega às livrarias em novembro pela editora Intrínseca.
Por que a obra de Piketty causa alvoroço?É inevitável que o tema distribuição de renda e de riqueza gere este tipo de comoção. É um ponto que toca a vida das pessoas e, portanto, um tema sobre o qual todo mundo se interessa. O fenômeno Piketty nos Estados Unidos é ainda mais interessante porque se trata de um livro de economia, que em geral não atrai tanto interesse, e escrito por um francês. Nos EUA, o assunto ficou ainda mais evidente após a crise de 2008 porque ficou nítido que hoje é um país menos igualitário do que já foi no passado, e um pedaço grande da classe média encolheu em razão da crise. O pós-crise e a percepção de que as coisas se tornaram de certo modo mais injustas explica esse fenômeno.
O livro é complexo ou de fácil leitura?O texto é muito bem escrito. Apesar de denso e um pouco técnico, pode ser lido por qualquer pessoa, não precisa ser especializado em economia. Usa exemplos da literatura universal e de filmes contemporâneos para ilustrar certos pontos.
Do ponto de vista político-econômico, a senhora se identifica com a obra?O livro tomou uma conotação de esquerda que na verdade não tem. Vivemos em um mundo de patrulhas ideológicas, tanto à direita quanto à esquerda. No Brasil, isso é atenuado, mas também há. É um livro que simplesmente discute coisas que afetam as sociedades. Os sistemas econômicos, sejam quais forem, têm conduzido a concentrações de riqueza. É fato. Não tem ideologia.
Não é uma crítica direta ao capitalismo?É uma constatação feita sobre uma análise muito detalhada. Não podemos ser ingênuos a ponto de achar que nossas sociedades não têm problemas. Não dá para achar que se as coisas funcionam sozinhas, sem regulação. Os mercados nos EUA, sem controle, explodiram e quase arrastaram o resto do mundo. Capitalismo sem regulação não funciona. Já é consenso. Não é argumento nem de esquerda, nem de direita. O livro só aponta que o capitalismo tem imperfeições, limitações. Se me identifico com essa posição? Sim, claro.
Então, resumir a obra à velha discussão liberais versus marxistas é um erro?É uma idiotice sem tamanho. Muitos dos marxistas sequer leram Marx. Os liberais progressistas nos EUA de hoje são considerados a “esquerda”. Paul Krugman é um liberal progressista, visto como uma pessoa de esquerda.
Tem muita gente comentando a obra sem ter lido o livro, é isso?Sim. O debate sobre Piketty no mundo e com especial intensidade no Brasil hoje está um pouco assim: gente concordando com o que ele não disse e gente discordando do que ele não disse.
Como avalia as supostas falhas apontadas pela Financial Times?São irrelevantes para o conjunto da obra. Série de dados de qualquer natureza tem defeitos. A série do PIB brasileiro não é perfeita, apesar de o IBGE fazer um bom trabalho. Uma coisa é o conceito, outra é a métrica. Não é fácil medir o PIB de um país. O mesmo vale para dados de riqueza e renda. Ainda mais construindo séries que voltam 300 anos no tempo, que exigem ajustes para permitir comparações. É óbvio que alguns ajustes são arbitrários, como em qualquer trabalho acadêmico dessa natureza. Acho que o Financial Times foi extremamente infeliz ao tentar desqualificar uma obra importante em um momento em que essa discussão se torna tão relevante para o mundo.