Paulo Brossard*
Entre nós, é comum empregar-se a palavra crise para quase tudo, com propriedade ou sem ela, razão por que não surpreenderá a ninguém se eu aludir à “crise” ao apreciar o público e inédito desentendimento entre dois poderes da República. A propósito, lembro-me de três episódios, todos provocados pelo Executivo, envolvendo o Supremo Tribunal Federal; o primeiro cometido pelo Marechal Floriano, por omissão, ao deixar de nomear tantos ministros que a Corte perdeu as condições de funcionar, pois deixara de ter quórum; o outro, pelo Marechal Hermes, ao negar formalmente cumprimento à decisão do Tribunal; o terceiro foi a cassação de acórdão unânime do Supremo por Getúlio Vargas.
Agora a fórmula passou a ser outra, quase inocente, mas igualmente deletéria, por meio de mera troca de cifras, elevando o número de votos necessário para afirmar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, exigência constitucional desde a Lei Suprema de 1934, de maioria absoluta, seis, para quatro quintos dos membros, ou nove votos entre os 11 ministros. Nem sempre é fácil alcançar a maioria absoluta, e a exigência de quatro quintos da Corte, nove em 11, torna essa hipótese extremamente difícil.
Por meio de expediente supostamente ingênuo, opera-se a efetiva mutilação do Supremo Tribunal Federal e abole-se dessa forma, sem o dizer, mas de maneira inegável, sua competência histórica nos países, como o Brasil, que consagram a fiscalização jurisdicional da espécie; ainda mais, indiretamente, enseja-se a elaboração de atos legislativos até ostensivamente inconstitucionais.
Destarte, sob essa singela manobra, o Supremo Tribunal sofreria a ablação da sua mais relevante atribuição, mais que centenária, a de decretar a inconstitucionalidade de lei quando o ato legislativo se desvia da Lei Maior. Deixando de lado o referente ao artigo 103-A, envolvendo à súmula vinculante, caso distinto que não posso examinar aqui por falta de espaço, passo à outra alteração proposta, artigo 102 §2 da Constituição. Trata-se do processo concentrado ou em abstrato, caso em que o tribunal julga a lei ou o ato questionado, em tese. Enquanto a Constituição estabelece que, nesse caso, “nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante”, o projeto em curso é diametralmente contrário, verbis “...não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional...”
Até agora, nenhum jurisconsulto, estadista, pensador, escritor político, professor de Direito, em livros, parecer, conferência, ou qualquer outro meio de comunicação, divulgou ser sequer simpático à iniciativa ora bafejada pela douta Comissão de Constituição e Justiça, em votação simbólica com a presença de apenas 21 de seus 68 membros.
Ocorre-me notar que não faltará quem estranhe que se possa pôr em dúvida a pretendida transferência do Supremo para o Congresso da competência irrecorrível. Em matéria jurídica, e precipuamente constitucional, não troco o Supremo pelo Congresso, Câmara e Senado, que também integrei e sempre exaltei, mas cuja composição proteiforme carece da familiaridade necessária com temas evidentemente fora da experiência do comum dos homens comuns, em prejuízo de homens obrigatoriamente neles versados.
Ainda teria muito a dizer, mas limito-me a salientar que, exceção do período estado novista, em mais de cem anos nunca houve quem agredisse o Supremo dessa maneira, nem nos 20 anos em que a nação viveu sob o regime mais autoritário, sem excluir os períodos de militarismo sem peias, ensejando toda a sorte de violências e casuísmos; sequer nessas fases alguém pensou em lesar a majestade no órgão supremo da Justiça. Esta “glória” estava reservada ao século 21, o nosso tempo e o nosso Supremo. O nosso Supremo e o nosso Congresso.
* JURISTA, MINISTRO APOSENTADO DO STF