JUSTIÇA QUE TRABALHA
Justiça

JUSTIÇA QUE TRABALHA


O ESTADO DE SÃO PAULO, 12 de agosto de 2012 | 3h 08


GAUDÊNCIO TORQUATO -JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP; É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO. 


À primeira vista, o dado causa impacto: em 2011 chegaram às prateleiras da Justiça do Trabalho 3.069.489 processos, dos quais 3.016.219 foram julgados. Os números mostram que, a cada 100 mil habitantes, 88 ingressaram com ação ou recurso no Tribunal Superior do Trabalho (TST), 296 nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e 1.097 nas Varas do Trabalho, uma expansão de quase 2% em relação ao ano anterior. A leitura da moldura estatística permite enxergar três hipóteses: a sociedade tem-se tornado mais conflituosa na roda do trabalho; os cidadãos ascendem ao patamar da cidadania pela escada dos direitos individuais e coletivos; a esfera da Justiça trabalhista faz a lição de casa, apresentando-se como uma das mais avançadas na escala da produtividade jurídica.

A pergunta de fundo é: qual a razão para números tão assombrosos, se nações avançadas, como os EUA e o Japão, registram quantidade ínfima de processos trabalhistas - 100 mil e mil, respectivamente? A imagem de sociedade em estado de litígio, convenhamos, não combina com a pacífica fisionomia nacional.

É evidente que os avanços da modernidade têm contribuído para desvanecer os "nobres predicados do caráter nacional", que Afonso Celso apontou em seu clássico Por que me Ufano do Meu País: "a afeição à ordem, à paz; a doçura, o desinteresse, o escrúpulo para cumprir obrigações contraídas, a caridade, a tolerância, a ausência de preconceitos", entre outros. Como o Brasil não é uma ilha tranquila num oceano revolto, é natural que tenha abrigado, ao longo dos ciclos históricos, antagonismos deflagrados por vertentes do capital e do trabalho, originados na desigualdade de classes, na racionalização de processos produtivos (em evolução desde a Revolução Industrial), nas lutas por melhores condições de trabalho, enfim, no desenvolvimento tecnológico, que muda as operações produtivas.

Por essa pista se chega à encruzilhada dos conflitos trabalhistas. Mas esse conjunto de fatores não justifica os exorbitantes dados que emolduram nossa Justiça do Trabalho.

A razão é outra: trata-se de uma legislação produzida na era Vargas, que cria amarras, engessa as relações trabalhistas e acaba jogando os contendores na arena dos embates. De lá para cá pouco se avançou. Em 1932 criaram-se as Comissões Mistas de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento. A Justiça do Trabalho apareceu em 1939, tendo sido regulamentada em 1940 e instalada no ano seguinte. Dois anos depois veio a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), reunindo e ampliando a dispersa legislação feita em duas décadas. Os dissídios individuais e coletivos passaram a formar o escopo da Justiça do Trabalho. As mudanças, ao longo dos anos, foram tênues e pontuais, contemplando transformações socioeconômicas e alguns nichos, como as questões portuária e previdenciária e as ações de indenização por dano material e moral decorrentes de acidente de trabalho e de doença profissional.

O leque foi incorporando muitas dobras, multiplicando os conflitos. E a dissonância se estabeleceu. Acordos entre categorias que chegam a um consenso sobre benefícios - flexibilização de horários, férias, etc. - podem ser contestados na Justiça pelo Ministério Público. Os sindicatos perderam força. A insegurança expandiu-se e hoje o Brasil enfrenta o dilema: enxugar o cipoal legislativo para acompanhar as mudanças tecnológicas que varrem territórios imersos na crise global ou abrir largas fendas no terreno do emprego.

A propósito da nossa gordura legislativa, o professor José Pastore lembra que nos EUA as leis federais do trabalho cobrem apenas seis pautas: salário mínimo, desemprego, aposentadoria, treinamento, saúde e negociação. O que aí não se inclui entra no acordo individual ou no contrato coletivo, sob a égide de máxima flexibilidade. Portanto, não é plausível culpar os tribunais pelo excesso de conflitos e julgamentos de cunho econômico, porquanto eles cumprem tarefa constitucional. Ao contrário, a Justiça do Trabalho apresenta desempenho dos mais produtivos do Poder Judiciário, bastando anotar os resultados de suas instâncias: o TST, em 2011, decidiu 206,9 mil processos dos 211,7 mil recebidos, enquanto os TRTs receberam quase 757 mil, julgando mais de 722 mil ações. A carga de trabalho dos ministros impressiona: 15.857 processos para cada um, considerando, ainda, que o TST reduziu em cem dias o tempo médio de tramitação de processos. Já a primeira instância recebeu 2.135.215 processos e decidiu 2.052.487 casos. E quase R$ 15 bilhões foram repassados para pagamento a trabalhadores que ganharam ações.

Esse eixo do Judiciário é um dos mais integrados à modernização. A tramitação eletrônica dos processos judiciais, que simplifica a burocracia e torna a Justiça mais ágil, já é realidade. Os advogados festejam o fato de hoje ser cada vez mais possível enxergar o fim de uma ação trabalhista, ao contrário do que se constata nas áreas civil e tributária. Outra nota de destaque é a transparência: o TST foi o primeiro dos tribunais superiores a divulgar salários de ministros, juízes e servidores. Obstáculos ainda existem. Há imensos gargalos na fase de execução de processos, em decorrência da insolvência de empresas e do não atendimento às disposições jurisdicionais, o que instiga as Cortes a usar suas ferramentas para pôr os créditos à disposição dos vencedores das ações.

Por último, ressalte-se o vigoroso passo dado pela sociedade na trilha dos direitos humanos. Nas últimas duas décadas os gêneros conquistaram bonitos troféus na luta por igualdade; categorias profissionais fizeram valer as especificidades e condições de suas tarefas; minorias étnicas e raciais, por via de intensa mobilização, levantaram suas bandeiras, concretizando antigos sonhos; as desigualdades entre classes diminuíram.

Sob essa esplendorosa arquitetura de direitos, a Justiça do Trabalho faz bem a lição de casa.



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