Justiça
JUÍZES ACUADOS
REVISTA ISTO É, N° Edição: 2224, 24.Jun.12 - 09:29 Dados do CNJ mostram que pelo menos 100 magistrados estão sob ameaça no País. E muitos deles são obrigados a se afastar de processos porque não resistem à pressão dos criminosos.Adriana Nicacio
INTIMIDAÇÃO. O juiz Paulo Moreira Lima, que já foi delegado da PF, teve de abandonar processo
contra o bicheiro Carlinhos Cachoeira por temer as ameaças contra si e sua família
Quando criminosos se sentem à vontade para intimidar um juiz, é porque há algo de muito errado nas relações de poder. A ameaça a magistrados é uma afronta ao Estado e na grande maioria das vezes só ocorre porque agentes públicos estão envolvidos com marginais. Foi exatamente o que ocorreu há duas semanas. O juiz substituto Paulo Augusto Moreira Lima viu-se obrigado a se afastar do processo contra o bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, por temer as ameaças contra si e sua família. Ao conduzir a investigação que envolve a Operação Monte Carlo, autorizar escutas telefônicas e denunciar 79 réus, entre eles 35 policiais, Moreira Lima perdeu a paz. Em fevereiro deste ano pediu autorização para usar o veículo blindado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde está lotado, e passou a viver recluso em casa, impedido de frequentar lugares públicos. Apesar dessas precauções, a inteligência da Polícia Federal o alertou que algo pior ainda poderia acontecer. Com Moreira Lima sucumbiu ao estresse.
Mas pretendia continuar à frente do processo até setembro, quando, seguindo orientação da PF, deixaria o País por três meses. O juiz disse a amigos que antecipou a decisão e pediu para sair agora depois que ficou sabendo do voto do desembargador Tourinho Neto, do TRF 1, que quase jogou por terra todo o seu trabalho. Na terça-feira 12, Tourinho considerou ilegais as interceptações telefônicas, que deram base à Operação Monte Carlo, e votou pela liberdade do bicheiro de Goiânia. “Se minhas provas estão sendo desqualificadas, se estou me sacrificando à toa, eu estou saindo do processo”, explicou Moreira Lima à corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon. “Ele me disse estar preocupado por não se sentir seguro sequer perante os seus colegas”, comentou a ministra. Na semana passada, Moreira Lima entregou definitivamente os pontos e foi transferido para a 12ª Vara Federal, bem longe da bandidagem.
VIDA EM RISCO. Em quatro meses, o juiz do Trabalho Rui Barbosa trocou o número de seu celular
12 vezes. Mesmo assim, ele e sua filha continuaram a receber ameaças de morte
A saída de cena do magistrado que conduziu o caso Cachoeira não é um caso isolado no Judiciário e nem é exclusivo de quem trabalha na área criminal. Levantamento do CNJ mostra que pelo menos 100 juízes estão sob ameaça no País e o número não para de aumentar. No entanto, menos da metade possui escolta. Há um mês, o juiz do Trabalho Rui Barbosa Carvalho levou a mulher e duas filhas para bem longe de Rondônia e escondeu-se no interior do País. Seu inferno começou há um ano. Presidente da Associação dos Magistrados Trabalhistas da 14ª Região, Rui Barbosa recebeu um ofício da juíza da 2ª Vara do Trabalho de Porto Velho, Izabel Carla, pedindo que a entidade denunciasse ao CNJ a movimentação irregular de um processo bilionário que saiu da 2ª Vara para a 7ª Vara do Trabalho. Trata-se do processo 2039/1989, uma ação coletiva de funcionários da área de educação do antigo território de Rondônia, que poderia chegar a R$ 3 bilhões. Apesar de inúmeras denúncias de fraudes, a Justiça de Rondônia já liberou cerca de R$ 1 bilhão. E mais R$ 750 milhões deveriam ser liberados neste ano. Na tentativa de intimidar Rui Barbosa, bandidos passaram a ameaçar sua filha mais velha.
Em quatro meses, Rui Barbosa trocou o número de seu celular 12 vezes e, mesmo assim, continuou a receber ameaças de morte. Numa ocasião, logo depois de sua filha sair para a escola, recebeu a seguinte mensagem: “Estou na esquina, observando sua casa.” Por duas vezes a ameaça foi mais direta: “Vamos matar sua filha.” Rui Barbosa, então, mandou-a estudar em outro Estado. Os criminosos seguiram seus passos: “Fala para o seu pai não se meter nesse assunto.” Mas Rui Barbosa não recuou e a corregedora Eliana Calmon suspendeu o pagamento dos precatórios. Hoje, ele vive sob proteção policial. Outros juízes também foram ameaçados nesse mesmo processo. Titular da 7ª Vara, o juiz Delano Serra Coelho recebeu ligações para que despachasse a favor da liberação dos R$ 750 milhões ou sua esposa e filha – que não moram mais em Rondônia – sofreriam as consequências. Delano resistiu.
BLINDAGEM - Alvo do crime organizado, Wilson Witzel passou a usar colete à prova de balas
Sem querer se identificar, um terceiro juiz também ligado ao julgamento dos precatórios em Rondônia foi transferido do Estado. Nos autos do Inquérito Policial nº 383/2011 – SR/RO, ele diz que foi pressionado a não atuar no processo. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados, juiz Renato Henry Sant’Anna, diz que o número de juízes do Trabalho ameaçados triplicou no último ano. Mas os casos são guardados a sete chaves para evitar a exposição dos juízes e a fragilidade da Justiça. “Não podemos nos intimidar”, diz Sant’Anna.
Mas não ficar acuado está cada vez mais difícil. A maior parte dos juízes ameaçados está no interior do Paraná, seguido do Rio de Janeiro. Um juiz criminal paranaense, que não quer se identificar por não ter segurança oficial, conta que a última ação dos criminosos foi colocar um bilhete debaixo da porta. Num episódio inspirado em filmes, a carta dizia “Cuidado” com recortes de revista. Há oito anos, o juiz Wilson Witzel bateu de frente com o crime organizado do Rio de Janeiro e do Espírito Santo e chegou a receber ameaças diretas de um presídio de segurança máxima. Sua rotina virou de cabeça para baixo. Wilson passou a usar colete à prova de balas e montou um sistema de segurança sofisticado em sua residência. Mas cansou de viver na linha de tiro do crime e pediu transferência para a 2ª Vara de Execução Fiscal de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. “O juiz vive numa situação vulnerável e o Congresso não aprova medidas de proteção e não dá para uma única pessoa combater o crime organizado. É uma loucura”, disse Witzel à ISTOÉ.
Quem não morre ou se esconde é obrigado a viver sob escolta. O juiz mais ameaçado do País, Odilon Oliveira, tem um posto da Polícia Federal dentro de sua casa em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Titular da 3ª Vara Federal, sua especialidade é combater a lavagem de dinheiro e confiscar bens, o que tem feito nos últimos 25 anos. Sob proteção policial desde 1998, há um ano recebeu um e-mail do tráfico: “O doutor fará 70 anos em 25 de fevereiro de 2019 e prejudicou muita gente.” A mensagem era clara: aos 70 anos, Odilon será obrigado a se aposentar e corre o risco de perder a escolta policial. Diante de casos que se multiplicam, a ministra Eliana Calmon faz uma grave advertência: “Nós não podemos ter juízes ameaçados, não podemos aceitar que ameaças veladas, físicas ou morais, possam impedir que a nossa magistratura desempenhe suas funções.” Em suma, a Justiça não pode curvar às pressões do Estado paralelo.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Esta situação grave e surreal é produto da anomia do Estado brasileiro frente às questões de ordem pública. O Congresso e as Assembleias legislativas têm sido poderes ausentes, omissos, benevolentes com a bandidagem e coniventes com as negligências do Poder Executivo e o Poder Judiciário tem se colocado como um poder burocrata, tolerante e moderador ao invés de ágil aplicador coativo das leis e irredutível guardião das leis. Esta anomia reflete lá na ponta uma impunidade vergonhosa tanto dos governantes como dos bandidos que agem com oportunismo, ousadia, crueldade e sem respeito às leis ou à autoridade constituída. Os juízes estão sendo acuado a muito tempo pela inoperância do poder, pela ingerência partidária, pelo poder corruptor, pelo corporativismo de seus membros, pela política salarial que consome quase 80% do orçamento, e agora pela bandidagem. Estes fatores impedem a desburocratização, a descentralização, a agilidade nos processos e sentenças, a eficácia funcional e a estrutura de um judiciário capacitado em número de juízes e funcionários, e mais próximo da sociedade, dos delitos, das polícias, das questões de segurança, e de um sistema de justiça criminal (inexistente no Brasil), devidamente comprometido com a justiça e com a preservação da ordem pública, da vida e do patrimônio das pessoas.
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