ESPIONAR NÃO É PECADO, RUIM É SER DESCOBERTO
Justiça

ESPIONAR NÃO É PECADO, RUIM É SER DESCOBERTO





FOLHA.COM 04/11/2013 - 12h05

Análise: Brasil espionar não é pecado, ruim é ser descoberto


RICARDO BONALUME NETO
DE SÃO PAULO




Países não têm amigos, apenas interesses. Essa clássica definição foi usada por muitos líderes políticos ao longo da história em frases de efeito.

Dois nomes que logo surgem à mente são o presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970) e o estadista britânico Lord Palmerston (1784-1865), que produziram versões muito citadas dessa ideia. Ou seja: vale tudo quando se trata de proteger o interesse nacional, inclusive espionar países no momento "amigos" ou mesmo os que sempre o foram.

Basta lembra que Israel montou redes de espionagem para obter segredos nos Estados Unidos, incluindo dados militares confidenciais. E sem os EUA Israel teria tido grandes dificuldades para sobreviver ao confronto com um mundo árabe imensamente maior desde a criação do Estado judaico em 1948. Os Estados Unidos são o maior "amigo" de Israel. Mas os dois lados sempre se espionaram. Informação útil e relevante nunca é demais.

Um incidente rendeu até mortos e feridos. Um navio de guerra americano, USS Liberty, estava nas costas de Israel aparentemente "espionando", isto é, captando sinais de rádio e radar, quando foi atacado por forças israelenses durante a Guerra dos Seis Dias em 1967. Morreram 34 americanos, 171 ficaram feridos.

Israel alegou que foi um erro. Muitos sobreviventes do navio alegaram que o ataque foi deliberado, pois ele estava claramente identificado como americano e navegando em águas internacionais.

Que o Brasil tenha espionado diplomatas estrangeiros não é pecado; pecado é ser flagrado fazendo a coisa. Pega mal. Se confirmado sem dúvidas, pode fazer com que os espionados peçam uma satisfação diplomática, um pedido de desculpas. Embora esteja claro que esses países "vítimas" também espionam o resto do mundo. Rússia, Irã e EUA estão longe de ser inocentes no tema!

Eu pessoalmente me lembro de um "diplomata" de país da Europa oriental que me contatou algumas vezes em busca de informações sobre o programa brasileiro de compra de um novo caça (F-X, hoje F-X2) e sobre as colaborações do Brasil na área espacial. Não comentei com ele nada que não fosse conhecido, não quebrei a lei passando informações confidenciais. Não tenho talento para ser espião. Nem quero saber se paga bem...

Existem vários tipos de atividades que podem ser considerados "espionagem", algumas legítimas. Buscar informações na imprensa, na internet, ajuda a criar um banco de dados sobre países e pessoas, e é legal.

Vasculhar as ondas de rádio e as transmissões do "inimigo" ou do "amigo" era algo tradicional antes mesmo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Checar e-mails confidenciais, fazer escutas, é outra história. Mas faz parte do jogo. Só não vale ser pego com a mão na massa.



Agência brasileira espionou funcionários estrangeiros

LUCAS FERRAZ
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA


O principal braço de espionagem do governo brasileiro monitorou diplomatas de três países estrangeiros em embaixadas e nas suas residências, de acordo com um relatório produzido pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e obtido pela Folha.

O documento oferece detalhes sobre dez operações secretas em andamento entre 2003 e 2004 e mostra que até países dos quais o Brasil procurou se aproximar nos últimos anos, como a Rússia e o Irã, viraram alvos da Abin.

Segundo o relatório, que foi elaborado pelo Departamento de Operações de Inteligência da Abin, diplomatas russos envolvidos com negociações de equipamentos militares foram fotografados e seguidos em suas viagens.

O mesmo foi feito com funcionários da embaixada do Irã, vigiados para que a Abin identificasse seus contatos no Brasil. Os agentes seguiram diplomatas iraquianos a pé e de carro para fotografá-los e registrar suas atividades na embaixada e em suas residências, conforme o relatório.

A Folha entrevistou militares da área de inteligência, agentes, ex-funcionários e ex-dirigentes da Abin nas últimas duas semanas para confirmar a veracidade do conteúdo do documento que obteve. Alguns deles participaram diretamente das ações.

O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, ao qual a Abin está subordinada, reconheceu que as operações foram executadas e afirmou que todas foram feitas de acordo com a legislação brasileira.

Segundo o governo, foram operações de contrainteligência, ou seja, com o objetivo de proteger segredos de interesse do Estado brasileiro.

Nos últimos meses, o vazamento de documentos obtidos pelo analista americano Edward Snowden permitiu que o mundo conhecesse detalhes sobre atividades de espionagem dos EUA em vários países, inclusive no Brasil.

Diante da revelação de que até suas comunicações com assessores foram monitoradas, a presidente Dilma Rousseff cancelou uma visita aos EUA e classificou as atividades americanas como uma violação à soberania do país.

As operações descritas no relatório da Abin têm características modestas, e nem de longe podem ser comparadas com a sofisticação da estrutura montada pela Agência de Segurança Nacional americana, a NSA, para monitorar comunicações na internet.

Ainda assim, o documento mostra que, apesar do que a retórica da presidente poderia sugerir, o governo brasileiro também não hesita em mobilizar seu braço de espionagem contra outros países quando identifica ameaças aos interesses brasileiros.


Editoria de Arte/Folhapress



DESCONFIANÇAS

As operações descritas no relatório ocorreram no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tomou posse em 2003 e entregou o cargo a Dilma em 2011.

Na operação "Miucha", de 2003, a Abin acompanhou a rotina de três diplomatas russos, incluindo o ex-cônsul-geral no Rio Anatoly Kashuba, que deixou o país no mesmo ano, e representantes da Rosoboronexport, a agência russa de exportação de armas.

A Abin desconfiava que os funcionários russos estivessem envolvidos com atividades de espionagem no Brasil.

O brasileiro Fernando Gianuca Sampaio, cônsul honorário da Rússia em Porto Alegre, também foi monitorado pelo mesmo motivo. "Sou sim um agente russo, mas um agente oficial", disse Sampaio à Folha, em tom irônico.

Na operação "Xá", que monitorou a rotina e os contatos de diplomatas iranianos, a Abin seguiu os passos do então embaixador do Irã em Cuba, Seyed Davood Mohseni Salehi Monfared, durante uma visita ao Brasil, entre os dias 9 e 14 de abril de 2004.

Um agente da Abin que examinou o relatório a pedido da Folha afirmou que provavelmente os iranianos foram vigiados a pedido do serviço secreto de outro país, um tipo de cooperação usual entre órgãos de inteligência.

O relatório mostra ainda que o governo brasileiro espionou a embaixada do Iraque após a invasão do país pelos EUA, em 2003. Na época, muitos diplomatas buscavam refúgio no Brasil por causa da guerra, e por isso a Abin foi mobilizada para segui-los.

O então encarregado de negócios da embaixada, um dos que foram espionados, largou a diplomacia para se fixar no Brasil. Ele ganhou residência permanente e vive no Guará, nos arredores de Brasília.



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