Nos países bolivarianos, a “democracia” está sendo instrumentalizada para a implementação de seu projeto socialista, destroçando as liberdadesARTIGO - DENIS LERRER ROSENFIELD
O GLOBO:12/08/13 - 0h00
O uso equivocado ou dúbio de palavras não apenas dificulta a compreensão como é potente fator de desorientação da ação humana. Quando mal conceitualizamos um evento, tanto menos somos capazes de entender o que está acontecendo. Os juízos moral e político ficam sem parâmetros, ziguezagueando ao sabor das conveniências ideológicas.
Um caso particularmente relevante concerne ao modo mediante o qual o dito “golpe” egípcio é avaliado e, para além dele, a como a diplomacia brasileira “compreende” o que vêm a ser os “progressos” da América Latina em sua vertente socialista, bolivariana. Ainda recentemente, o Brasil sediou o Foro de São Paulo, entidade esquerdista latino-americana, que se caracteriza pelo seu apreço a toda política liberticida, em nome, pasmem, de uma nova “democracia”. Gostam mesmo é de uma “boa” ditadura. Os representantes ideológicos do passado procuram se travestir de um manto politicamente aceitável, ferramenta para enganar os incautos.
A propósito do juízo político sobre os eventos do Egito, alguns analistas fizeram um uso muito curioso dos conceitos de “democracia” e “liberalismo”, como se lá tivesse ocorrido uma colisão entre ambos. Mais comezinhamente, deveríamos dizer que lá ocorreu um divórcio entre um resultado eleitoral e os que defendem direitos e liberdades, que vinham sendo usurpados por um governo islamista. Este, progressivamente, sufocava as liberdades, implantando sua particular interpretação dos valores islâmicos, os defendidos pela Irmandade Muçulmana.
Não convém esquecer que essa mesma organização religiosa foi a responsável pelo assassinato do presidente egípcio Anuar El Sadat, participou da fundação da al-Qaeda e apoia o terrorismo do Hamas na Faixa de Gaza. Aliás, o atual líder da al-Qaeda é também ele egresso da mesma Irmandade Muçulmana. As credenciais “democratas” deste “partido” são de difícil aceitação!
Há um problema conceitual de monta aqui envolvido. A democracia, assim entendida, viria a significar exclusivamente a realização de eleições e a adesão incondicional aos eleitos, como se, doravante, tivessem eles o “direito” de tudo fazer, estando a sociedade submetida ao seu arbítrio. A democracia seria um mero instrumento de conquista do Poder que, uma vez garantido, asseguraria aos seus detentores a prerrogativa de tudo decidir, sendo soberanos no sentido ilimitado do termo. Nenhuma lei os limitaria, salvo aquela de fachada que eles mesmos se outorgam. O próprio Poder Judiciário torna-se um mero joguete em suas mãos, nada decidindo verdadeiramente, devendo se subordinar aos ditames do Executivo.
Logo, os direitos individuais são abolidos, valores burgueses nos dizeres bolivarianos, valores ocidentais nos dizeres islamistas. As liberdades são progressivamente sufocadas, em nome desses “outros” valores socialistas/islamistas segundo os casos, com o Estado aspirando por todos os poros mediante os quais uma sociedade respira. Normalmente, os seus alvos mais diretos são os grupos de mídia e imprensa, pois quem procura impor os seus valores e ideias tem como objetivo eliminar toda liberdade de expressão. Não espanta, pois, que advoguem por uma “democratização dos meios de comunicação”, que é uma forma velada de controlar as cabeças das pessoas e, por meio delas, a sociedade em geral. Ainda no Foro de São Paulo, o presidente Evo Morales julgou — na ausência de juízo que o caracteriza — que “sobra” liberdade de imprensa na América Latina. Ou seja, o que “sobra” é o que ainda não conseguiram eliminar. Teve a adesão dos “companheiros”.
Se a democracia é definida apenas em termos eleitorais, ela é reduzida a uma de suas condições, eliminando todas as outras. A própria alternância de Poder termina por não ocorrer, pois os que detêm as rédeas de comando da máquina do Estado eliminam tal possibilidade. Medidas arbitrárias são tomadas contra os opositores, tratados como se criminosos fossem. São comuns os processos contra os que se rebelam contra tal situação, uma vez que são tidos por inimigos a serem aniquilados.
A liberdade de imprensa, condição fundamental de toda sociedade livre, vê-se confrontada a restrições crescentes, como vemos na Venezuela, com empresas sendo fechadas ou vendidas a “empresários” amigos. Observe-se, neste sentido, a nova lei de controle da imprensa e dos meios de comunicação que acaba de ser aprovada no Equador, doravante submetidos ao governo, que passará a agir por intermédio de “censores legais”.
Nos países bolivarianos, a “democracia” está sendo instrumentalizada para a implementação de seu projeto socialista, destroçando as liberdades, destruindo as instituições, inviabilizando as oposições, calando os meios de comunicação e implantando a dominação do “Líder máximo” e de seu partido. Embora ditos não religiosos, sua ideologia se caracteriza por concepções teológico-políticas. No caso do presidente Maduro, da Venezuela, não lhe falta nem sua comunicação espiritual como ex-protoditador Chávez, que “fala” com ele através de uma “pomba”. É um homem abençoado, particularmente bem aventurado!
Acrescentem-se as restrições impostas pelos que procuram impor normas religiosas ao conjunto da população, mediante o controle absoluto dos costumes, atingindo mulheres e homossexuais, para que se tenha uma melhor visão de como a democracia é, assim, pervertida. Ou seja, os que dissociam democracia de liberalismo, dizendo defender a primeira, possuem um forte pendor liberticida. Mascaram-no, porém, ao atribuírem ao liberalismo uma característica não democrática.
Eis o contexto ideológico no qual se move a diplomacia brasileira, acatando todas as medidas liberticidas dos países bolivarianos e islâmicos, conivente com os desmandos que lá ocorrem de subversão da democracia por meios democráticos. O país termina se alinhando à escória mundial em nome da democracia e, os mais afoitos, em nome da luta contra o neoliberalismo. O Foro de São Paulo é a sua celebração!
Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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