CINISMO E IMPUNIDADE
Justiça

CINISMO E IMPUNIDADE


Domingo, 27 de março. Três reportagens, em jornais de referência nacional, foram um banho de água fria. O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, cada um com pauta própria, mostraram o tamanho da impunidade que algema a cidadania. Revelaram, dramaticamente, a incapacidade do Estado de punir os crimes e os malfeitos.

O Estado focou suas baterias no mensalão. Segundo informações do repórter Felipe Recondo, o processo de desmantelamento do mensalão do PT, a pior crise política do governo Lula, já tem data para começar: será a partir da última semana de agosto, quando vai prescrever o crime de formação de quadrilha. O crime, citado mais de 50 vezes na denúncia do procurador-geral da República - que foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) -, é o cerne do processo. Mas prescreverá sem que nenhum dos mensaleiros tenha sido julgado.

O primeiro sinal do desmonte do mensalão foi dado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao deixar o governo, ele disse que sua principal missão, a partir de janeiro de 2011, seria mostrar que o mensalão "é uma farsa". A "farsa" a que se referia Lula derrubou ministros do seu governo, destituiu dezenas de diretores de estatais e mandou para o espaço a cúpula do seu partido. Encurralado, o então presidente só não caiu graças ao tamanho da incompetência da oposição. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso salvou Lula da derrocada. Quando se escrever a História isenta do Brasil, e se escreverá, bastidores projetarão muita luz. Réus do processo passaram a ocupar postos altos nas estruturas dos Poderes. João Paulo Cunha (PT-SP) foi eleito presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. José Genoino foi nomeado assessor especial do Ministério da Defesa, comandado por Nelson Jobim, ex-presidente do STF. José Dirceu, "o chefe da quadrilha" - segundo escreveu o então procurador-geral da República na denúncia em que acusou a antiga cúpula do partido do presidente Lula de se ter convertido numa "organização criminosa" -, transita com notável desembaraço nos corredores do poder.

Registro palavras proféticas do ministro Marco Aurélio Mello, do STF, ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). "Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e as notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz de conta. Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos nacionais, que os culpados nada sabiam - o que lhes daria uma carta de alforria prévia para continuar agindo como se nada de mau tivessem feito." Impressionante! A provável impunidade dos mensaleiros é a trágica sinalização da incapacidade do Estado de realizar a justiça.

Já levantamento feito pela Folha mostrou que empresas abertas em nome de outras pessoas (laranjas) são frequentemente usadas por especuladores, igrejas e políticos para obter concessões de rádio e TV em licitações do governo federal. A jornalista Elvira Lobato, em matéria bem apurada, analisou os casos de 91 empresas que estão entre as que obtiveram o maior número de concessões entre 1997 e 2010. Dessas, 44 não funcionam nos endereços informados ao Ministério das Comunicações. Entre seus "proprietários", informa a reportagem, constam, por exemplo, funcionários públicos, donas de casa, cabeleireira, enfermeiro, entre outros trabalhadores com renda incompatível com os valores pelos quais foram fechados os negócios.

Mas o mais estarrecedor, de longe, foi a reação do governo à reportagem. O secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Genildo Lins de Albuquerque Neto, num jogo clássico de empurra, disse que a investigação cabe à Polícia Federal e que não há lei que impeça desempregado de abrir uma empresa. Fantástico! O governo, formalmente, declara-se incompetente para combater a fraude.

Por sua vez, O Globo, em sólida reportagem especial, traçou um retrato de corpo inteiro das fraudes do Sistema Único de Saúde (SUS). Criado em 1990 para assegurar o pleno atendimento médico-hospitalar à população, o SUS, cantado por Lula como um dos melhores do mundo, transformou-se num dos maiores ralos da corrupção. A reportagem de Roberto Maltchik mostra que investigações administrativas do Ministério da Saúde e da Controladoria-Geral da União (CGU), concluídas entre 2007 e 2010, apontaram desvios de R$ 662,2 milhões do Fundo Nacional de Saúde. O rombo pode ser bem maior, pois somente 2,5% das chamadas transferências fundo a fundo são fiscalizadas, de acordo com a CGU. De acordo com a reportagem, "gestores do Ministério da Saúde ouvidos no anonimato, técnicos de controle, procuradores e promotores afirmam que a pasta se satisfaz com relatórios que ninguém lê e não toma providências para conferir sua veracidade. O Sistema Nacional de Auditoria do SUS, que prevê a criação de grupos de controle, nunca saiu do papel".

Na área da saúde pública, como se pode ver, o Estado também é leniente com os malfeitos e incapaz de combater a impunidade. Mas, voraz como sempre, movimenta os bastidores para recriar a CPMF. Pode anotar, amigo leitor: tentarão recriar o imposto. É só uma questão de oportunidade e de tempo.

O último parágrafo deste artigo, uma amostragem da incompetência do Estado, deveria estar marcado pelo desalento. Mas não está. Estou convencido de que a imprensa brasileira, com seus equívocos e limitações, tem papel decisivo na recuperação ética. É aí que reside o meu otimismo. Jornalismo de qualidade é o melhor antídoto contra a corrupção e a bandidagem. E um governo que quer acertar só pode louvar o trabalho de repórteres éticos e competentes.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO, DOUTOR EM COMUNICAÇÃO, É PROFESSOR DE ÉTICA E DIRETOR DO MASTER EM JORNALISMO - O ESTADO DE SÃO PAULO, 04/04/2011



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