ABUSO SEXUAL. VESTINDO COLETE À PROVA DE BALAS, Roger Abdelmassih atravessou corredor sob gritos de maníaco e monstro. Foragido havia três anos, foi preso no Paraguai e é condenado a 278 anos de prisão por 48 ataques a 37 mulheresTensão e revolta marcaram a chegada do ex-médico Roger Abdelmassih, 70 anos, ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, por volta das 15h40min de ontem. Com colete à prova de balas e escoltado por policiais, ele desembarcou sob vaias e gritos de mulheres que o aguardavam no saguão. Uma delas tentou furar o cerco e agredi-lo, mas foi contida pelos policiais.
Pelo menos cinco vítimas do ex-médico acompanharam a chegada dele – que passou por um cordão de isolamento ao ser conduzido a uma sala da polícia–, e usaram palavras como “monstro”, “maníaco”, “manipulador”, “safado” e “criminoso” contra Abdelmassih. Depois choraram e disseram que não dormiram nem comeram só para estar no aeroporto e ver a cara dele depois de preso.
– Agora começa o processo de cura. Mas vamos atrás de quem estava acobertando ele – disse Helena Leardini, uma das vítimas.
Outra ex-paciente de Abdelmassih que estava no aeroporto, Ivanilde Serebrenic desabafou:
– Ele olhou na minha cara, fiquei perto dele, e ele viu que não tenho medo. Que ele viva muito agora, que apodreça na cadeia, amargue todo dia. Espero que ele encontre alguém lá dentro que faça com ele o que ele fez com a gente.
– Ele reconheceu as vítimas quando chegou, mas diz que não é bem assim, que há exagero. Alega inocência e diz que vai reverter a situação. Mas chorou bastante lá dentro quando lembrou dos filhos – afirmou o delegado da polícia do Rio de Janeiro Osvaldo Nico Gonçalves.
A policiais e à Rádio Estadão, Abdelmassih apontou sua mulher, a ex-procuradora da República Larissa Maria Sacco como a mentora da fuga.
– Achava melhor me entregar. Minha mulher disse: ‘Não, vamos embora’. Aí, falei com minha irmã que tem um haras em Presidente Prudente. De lá, fomos para o Paraguai – contou.
Ele afirmou que foi “condenado escandalosamente” e que “não existe prova nenhuma”. Abdelmassih acrescentou que merece ficar em liberdade ao comparar seu caso ao mensalão:
_ Se o (José) Genoino pode sair (da cadeia) por causa do problema (de saúde) dele, eu posso também. Eu tenho uma prótese. Isso é muito pior.
O ex-médico deixou o aeroporto cerca de uma hora depois, seguindo em comboio policial para a penitenciária de Tremembé, no interior paulista.
Abdelmassih foi preso terça-feira em Assunção, capital do Paraguai. Ele estava vivendo no país vizinho com o nome de Ricardo, e pretendia viajar para o Líbano, segundo informações da Polícia Federal.
Conforme o delegado da Polícia Federal Marcos Paulo Pimentel, as polícias de Brasil e Paraguai entraram em acordo para prender o ex-médico por irregularidades na migração. Abdelmassih estava no Paraguai sem permissão de entrada ou visto. Ele foi condenado a 278 anos de prisão por 48 estupros cometido contra 37 mulheres.
O palacete em AssunçãoO ex-médico Roger Abdelmassih levava uma vida luxuosa, segundo autoridades paraguaias. Tinha babás, chofer, seguranças e frequentava restaurantes caros e exclusivos com a mulher. Para viver no anonimato desfrutando de conforto, o brasileiro contaria com apoio de uma rede local de proteção que incluiu políticos e policiais, segundo o ministro antidrogas do Paraguai, Luis Alberto Rojas, que não citou nomes.
Entretanto, estava devendo o aluguel da casa na qual vivia escondido havia três anos e meio em Assunção. Ele pagava US$ 5 mil por mês pelo número 1.976 da Rua Guido Spano, na Villa Morra, um bairro nobre na capital paraguaia, onde também mora o presidente do país, Horacio Cartes. Administrador da imobiliária Saturno, Miguel Portillo disse que alugou a residência há quase quatro anos para um homem que se identificou como Ricardo Galeano, a identidade que Abdelmassih usava no Paraguai. Ele não soube especificar quantos aluguéis estavam pendentes.
Segundo Portillo, a mulher do ex-médico, Larissa Maria Sacco, identificava-se como Lara Sacco. A empregada de uma vizinha disse que o casal passeava com as crianças na rua e frequentava restaurantes caros
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As sequelas do traumaUm dos reflexos mais comuns entre as vítimas de abusos sexuais é o desenvolvimento do chamado transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). Além de pensamentos e lembranças recorrentes do momento da agressão, manifestadas em flashbacks, pesadelos e sobressaltos, o paciente com TEPT tende a se esquivar de situações, contatos e atividades que possam trazer a agressão à memória. Junto a esses sintomas, a vítima ainda pode apresentar outros, como distúrbios do sono, irritabilidade e hipervigilância.
Embora nem toda vítima de abusos possa desenvolver o transtorno, a experiência negativa geralmente acaba trazendo alguma dificuldade para a pessoa em seu dia a dia. Segundo o presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Carlos Salgado, a situação das vítimas de Abdelmassih se torna ainda mais grave por envolver um médico que, ao menos teoricamente, deveria contar com a confiança das pacientes.
– A intimidade não consentida, por meio de estupro ou abuso, em um contexto onde se espera que o outro sujeito seja alguém confiável, como um conselheiro, é extremamente traumatizante, porque causa danos além do imediato, atingindo a pessoa e sua confiança em questões sociais muito importantes – afirma Salgado.
Para o professor Rodrigo Grassi, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Trauma e Estresse da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o fato de pacientes terem sido supostamente abusadas quando estavam sedadas dificulta ainda mais a assimilação do trauma. Além disso, não ter lembranças do momento do abuso acentua as reações de ira das vítimas quando reencontram com o agressor:
– Elas acabaram tendo de lidar com o fato, até para poderem se reorganizar, mas faltavam várias informações porque estavam sedadas. Quando deparam com o agressor, diversas reações emocionais podem aflorar.
Apesar da intensidade dos sentimentos experimentados no reencontro, como ocorreu com as vítimas que ontem foram à chegada de Abdelmassih em São Paulo, o momento de desabafo pode ser positivo, segundo o psiquiatra Carlos Salgado.
– A pessoa que se mobiliza para isso (ir até o aeroporto) tem um jeito de funcionar, uma psicologia particular que vai se beneficiar desse alívio. Extravasar a raiva contida há tanto tempo lhe dará o senso da justiça, de que o agressor está sendo condenado. Ele fugiu, mas está sendo punido. Ela (vítima) assiste a essa punição consumada, e isso lhe traz uma condição de alívio – avalia.
DENÚNCIAS COMEÇARAM EM 2008