ASSASSINOS!
Justiça

ASSASSINOS!



O Estado de S.Paulo 11 de maio de 2014 | 2h 15


Roberto Romano



Os deuses têm sede de sangue e dirigem a multidão, como enuncia Elias Canetti, rumo à horda de caça ou de fuga. Os gestos da matilha humana reiteram milênios de preconceitos, calúnias contra minorias, genocídios programados por dirigentes religiosos ou políticos. O assassinato de Fabiane Maria de Jesus, acusada de magia negra e uso de crianças em rituais satânicos, repete a brutalidade do "homem, lobo do homem".

Vejamos os antecedentes históricos daquela tragédia, examinemos o sacrifício ritual de crianças. O fato é antigo como a sociedade humana: destruir, oferecer, consagrar são os elementos do sacrifício que, segundo o clássico antropólogo Marcel Mauss, tende a verter o sangue da vítima voluntária ou designada "para dar um sentido à coletividade e a transformar num todo comunitário" (Marie-France Rouart). Não existe ordem humana sem a tremenda sombra da morte inocente, mostra René Girard (A violência e o sagrado). Quando a Igreja era jovem, os escritores pagãos viam na missa uma celebração do sacrifício humano. As frases da fé (Hoc est corpus meum, Hic est enim calix sanguinis mei), ao afirmar a real presença de Cristo, suscitaram iras, criaram boatos sobre a comunidade (Wilken R. L., The Christians as the Romans Saw Them). Os advogados da Igreja, entre eles Tertuliano, rebateram as acusações de canibalismo infantil asseverando que a prática pertencia, de fato, aos pagãos. "Para melhor refutar tais calúnias, mostrarei que sois vós que cometeis aqueles crimes, publicamente ou em segredo. Talvez seja por semelhante motivo que os atribuís a nós" (Ad Nationes).

Tácito ataca cristãos e judeus no mesmo átimo, afirmando que os segundos teriam criado o costume de sacrificar infantes. Tito Lívio aproxima os sacrifícios cristãos das bacanais. Mas todos eles partem de um recurso depois recusado pela historiografia: escreveram "por ouvir dizer"(audivimus). Desgraçadamente, aquele modo de informação - o mais baixo de todos, segundo Spinoza - ainda presta serviços à infâmia das massas e de seus líderes. Ele foi usado na modernidade contra bruxas e judeus. Alguns escritores do século 19 chegaram ao máximo descompromisso com a verdade ao asseverar: "O que se adora no gueto não é o Deus de Moisés, é o horrível Moloch fenício para o qual é preciso vítimas humanas, crianças e virgens" (Drumont, Édouard: La France Juive, 1886).

Judeus e ciganos foram as maiores vítimas (com as mulheres acusadas de bruxaria) da massa delirante. No século das Luzes, Voltaire defendeu Calas, um pai acusado de assassinar o próprio filho por motivos religiosos. A boataria causou o esquartejamento do genitor sem culpa. Temos aí as ondas malditas do ódio recíproco entre católicos e protestantes. Houve muito boato sobre canibalismo na Guerra dos 30 Anos, a partir de casos isolados.

A propaganda adquire forma assassina quando massas são por ela preparadas para o massacre do "inimigo", inferior e criminoso por definição. Os nazistas semearam em sólo fértil. Mas os preconceitos receberam sanção positiva de intelectuais sectários. Mesmo Jean Bodin redigiu um tratado terrível intitulado A demonomania dos feiticeiros que ajudou a adubar o terreno do fanatismo. Muito instrutivo, a propósito, o livro recente que traz os trabalhos de um seminário sobre o tema: Os textos judeofóbicos e judeófilos na Europa Cristã da modernidade, dirigido por Daniel Tollet. Ali é clara a presença do antissemitismo cristão, com acusações de sacrifício ritual dirigidas aos judeus, algo retomado mesmo no século 19. Quem tiver estômago, leia a Bula Cum nimis absurdum, do papa Paulo 4 (14/7/1555). Os judeus seriam arrogantes criminosos que mereceriam a prisão no gueto, "sem direito de propriedade sobre sua própria casa, obrigados a usar um signo distintivo de cor amarela, sem trato comercial com os cristãos, proibidos de exercer profissões liberais" (Charles Molette). Não por acaso, a Bula foi invocada em 1942 para justificar as medidas policiais antissemitas da República de Vichy, no Bulletin Religieux de l'Archidiocèse de Rouen (25 de agosto de 1942). O bulletin, é verdade, foi proibido pelo arcebispo Pierre Petit, mesmo sob ameaças dos alemães. Mas ele era redigido por acadêmicos e clérigos ligados à massa "piedosa". Tais coisas entram no mesmo clima do boato maldito cujo nome é Os Protocolos dos Sábios de Sião.

Após a guerra doutrinária do caso Dreyfus, quando um inocente foi punido para salvar a razão estatal francesa, tivemos muitos outros exemplos de atitudes coletivas hediondas. Nem sempre o linchamento se justificou pelo sacrifício físico de crianças ou virgens. Ele serviu, nos embates sobre a pedofilia, para encobrir as piores injustiças e crueldades. Acaba de falecer um proprietário da Escola de Base, após as agressões mais brutais da massa ensandecida, da imprensa e mesmo de setores policiais e políticos. Ainda seguindo Spinoza: estamos longe da situação social em que os que pagam imposto assumem a si mesmos como "povo" e não como "vulgo". Boa parte de tal inferioridade se deve aos vampiros políticos, nutridos de populismo, corrupção, truculência, arrogância. A lentidão e a distância que mantêm a Justiça longe da vida civil ajudam poderosamente a fábrica de linchamentos em nosso país. Sem juízes que realmente decidam em tempo certo, com base na lei, fica a tentação do justiçamento e da barbárie.

O horror nazista recomeça no mundo e no Brasil. O antissemitismo, sua fonte maior, tem novos ensaios nos massacres cometidos por "justiceiros" movidos por alguns jornalistas, blogueiros e redes sociais. No jornal Zero Hora, de Porto Alegre, matéria gravíssima denuncia: Ameaça do neonazismo persiste no Rio Grande do Sul (2/5/2014). Quem lincha incentivado por rumores e com fundamento no preconceito pode perfeitamente aplaudir o massacre de milhões. Profético Rimbaud: "Eis o tempo dos assassinos".

*Professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de "O Caldeirão de Medeia" (perspectiva)



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